Friday, September 23, 2005

Quem era e o que pensava "Zaratustra"

Alma de Zaratustra
Seu discurso de vida.
Assim, pensava, e falava
Pesquisa de Wellington Alves






Homem, excita o cérebro!
Que diz a profunda meia-noite?
“Tenho dormido, tenho dormido!
De um profundo sono despertei:
O mundo é profundo, mais profundo do que o dia, pensava.
Profunda é a sua dor e a alegria mais profunda que o sofrimento!
A dor diz: Passa!
Mas toda a alegria quer eternidade, quer profunda eternidade!”




A Oferta do Mel




E tornaram a passar meses e anos pela alma de Zaratustra, sem ele dar por isso; mas os cabelos faziam-se-lhe brancos. Estando um dia sentado numa pedra diante da sua caverna, olhando para fora em silêncio, pois daquele ponto se via o mar até muito longe, para o outro lado dos abismos tortuosos, os seus animais, pensativos, andavam em torno dele e acabaram por se lhe pôr em frente.
“Zaratustra – lhe disseram – procuras a tua felicidade com os olhos?” – “Que importa a felicidade? – respondeu ele – Há muito tempo que não aspiro já à felicidade; aspiro à minha obra”. – “Zaratustra – replicaram os animais – dizes isso como quem está saturado de bem. Não estás deitado num lago azulado de ventura?”: “Velhacos! – respondeu Zaratustra, sorrindo – como escolhestes bem a parábola! Também sabeis, porém, que a minha felicidade é pesada, e que não é líquida como a onda: impele-me e não me quer deixar, aderindo-se como pez derretido”.
Os animais tornaram a voltear em torno dele, pensativos, e novamente se lhe postaram defronte. “Zaratustra – disseram – então é isso que explica por que estás tão sombrio e amareleces posto que os teus cabelos aparentam ser brancos? Consomes-te no teu pez!” “Que dizeis – exclamou Zaratustra rindo – Fiz mal em me lembrar do pez (pech, desgraça em sentido figurado). – O que me sucedeu, sucede a todos os frutos que amadurecem. O mel que tenho nas veias é que torna mais espesso o meu sangue e torna mais silenciosa a minha alma”. – “Assim deve ser Zaratustra – afirmaram os animais, encostando-se a ele; – mas, não queres subir hoje a uma alta montanha? O ar é diáfano, e hoje vê-se o mundo melhor que nunca”. – “Sim, animais meus – respondeu Zaratustra; – aconselhais à maravilha e conformemente ao meu desejo. Quero subir hoje a uma alta montanha! Procurai, porém, que haja mel ao meu alcance, mel de douradas colméias, amarelo, branco e bom, de glacial frescura. Ficai sabendo que quero já em cima fazer a oferta do mel”.
Quando Zaratustra chegou ao cume, despediu os animais que o haviam acompanhado, e viu que se encontrava só; riu-se então com toda a alma, olhou em redor, e disse assim:
“Falei de oferendas e de ofertas de mel; mas isto não passava de um ardil do meu discurso e uma útil loucura. Aqui em cima já posso falar mais livremente do que diante dos refúgios dos ermitões e dos animais domésticos dos ermitões.
E falava eu de oferendas e sacrifícios? Eu, que dissipo quando se me dá às mãos cheias, como me atreveria ainda a chamar a isso... sacrifício!
E quando pedi mel o que pedia era uma isca, doce mucilagem de que são gulosos os ursos rosnadores e as aves prodigiosas e altivas.
A melhor isca como a necessitam caçadores e pescadores. Que se o mundo é um como sombrio bosque povoado de animais de delícias de todos os ferozes caçadores, ainda me parece assemelhar-se mais a um mar sem fundo, um mar cheio de peixes e caranguejos que os próprios deuses cobiçariam a ponto de se tornarem pescadores e lançarem suas redes: tão rico é o mundo em prodígios grandes e pequenos!
Principalmente o mundo dos homens; o mar dos homens: a ele lanço eu a minha dourada sedalha, dizendo: “Abre-te, abismo humano.
Abre-te e traz-me peixes e reluzentes caranguejos! Com a minha maior isca pesco hoje para mim os mais prodigiosos peixes humanos!”
Eu lanço ao longe a minha felicidade, arrojo-a a todas as paragens, entre o Oriente, o Meio-dia e o Ocidente, a ver se não haverá muitos peixes humanos que aprendam a puxar por esta isca.
Até que, mordendo o meu agudo e oculto anzol, tenham que subir à minha altura, até o mais malicioso dos pescadores de homens, os mais vistosos gobiídeos das profundidades.
Porque eu sou, originária e fundamentalmente, força que puxa, que atrai, que levanta, que eleva: um guia, um corretor e educador que não foi em vão que disse a si próprio noutro tempo: “Mostra-te quem és!”
Por conseguinte, subam agora os homens ao meu lado; porque ainda espero os sinais que me digam ter chegado o momento do meu declinar; eu ainda não desapareço dentre os homens.
Por isso, astuto e zombeteiro, espero aqui nas altas montanhas, nem impaciente nem paciente, mas apenas como quem esqueceu a paciência... visto que já não “sofre!”
O meu destino dá-me tempo. Ter-me-á esquecido? Ou entretém-se a caçar moscas, sentado à sombra, por detrás de uma grande pedra?
E, na verdade, estou grato ao meu destino eterno, que me não fustiga nem empurra e me dá tempo para malícias; tanto que hoje trepei a esta alta montanha para apanhar peixes.
Acaso se viu já um homem pescando em altas montanhas? Mas ainda que o que eu quero lá em cima seja uma loucura, vale mais do que se lá em baixo me tornasse solene e me pusesse verde e amarelo à força de esperar; cheio de cólera à força de esperar uma santa tempestade rugidora que viesse da montanha, como um paciente que gritasse aos vales: “Ouvi, ou vos sacudo com o azorrague de Deus!”
Não é que a mim me irritem tais coléricos; unicamente me fazem rir. Compreendo que estejam impacientes esses tambores ruidosos que hão de ter a palavra hoje ou nunca!
Eu e o meu destino, porém, não falamos ao “hoje” e tampouco ao “nunca”; temos paciência para falar, e tempo, muito tempo, para isso. Porque ele há de chegar um dia, e não de passagem.
Quem terá de vir um dia, e não de passagem? O nosso grande acaso: é esse o nosso grande e longínquo Reinado do Homem, o reinado de Zaratustra, que dura mil anos...
Se esse “hoje” está ainda longe, que me importa? Nem por isso é menos sólido para mim... Confiadamente me firmo com os dois pés nesta base: sobre uma base eterna, sobre duas rochas primitivas, sobre estes antigos montes, os mais altos e rijos, de que todos os ventos se aproximam como de um limite meteorológico para se informarem dos pontos de origem e destino.
Ri-te aqui, ri luminosa e saudável malícia minha! Atira das altas montanhas o teu cintilante riso trocista! Atrai com o teu cintilar os mais formosos peixes humanos!
E tudo o que pertencer a mim em todos os mares, tudo o que for meu em todas as coisas, pesca-o para mim, traz-mo aqui acima: é o que espera o pior de todos os pescadores.
Ao longe, ao longe, meu anzol!... Desce, vai ao fundo, isca da minha ventura! Esparge o teu mais doce orvalho, mal do meu coração! Morde, anzol, no ventre de toda a negra aflição.
Ao longe, ao longe, olhos meus! Quantos mares em torno de mim, quanto futuro humiano na aurora! E por cima de mim... que risonho silêncio! Que silêncio sem nuvens!”



O Grito de Angústia
por Ni

No dia seguinte estava Zaratustra sentado na sua pedra diante da caverna, enquanto os animais andavam à cata de alimento... e de novo mel; porque Zaratustra tinha dissipado até ao fim o mel antigo. Estando ali sentado com um pau na mão, seguindo o contorno da sombra que o seu corpo projetava no solo, meditando profundamente – mas não em si mesmo nem na sua sombra – estremeceu de repente e ficou sobressaltado de terror: porque vira outra sombra ao lado da sua. E levantando-se e voltando-se rapidamente, viu em pé a seu lado o adivinho, o mesmo a quem uma vez dera de comer e beber à sua mesa, o proclamador do grande cansaço, que dizia: “Tudo é igual; nada merece a pena; o mundo não tem sentido; o saber asfixia”.
O semblante, porém, transformara-se-lhe desde então; e Zaratustra temorizou-se de novo, ao ver-lhe os olhos, a tal ponto se lhe lia neles funestas predições.
O adivinho, que logo compreendeu o que agitava a alma de Zaratustra, passou a mão pela face como se quisesse apagar o que havia nela. Zaratustra, por sua parte, fez a mesmo. Quando desta forma serenaram e cobraram ânimo, deram-se as mãos em sinal de que se queriam reconhecer.
“Sê bem-vindo, adivinho da grande lassidão – disse Zaratustra; – não foste em vão meu hóspede e comensal. Come e bebe hoje também na minha morada, e deixa que se sente à tua mesa um velho alegre”. – “Um velho alegre? – respondeu o adivinho, meneando a cabeça. – Quem quer que sejas ou desejes ser, Zaratustra, já o não serás por muito tempo cá em cima; dentro em pouco a tua barca já não estará ao abrigo”. “Acaso estou eu ao abrigo?” perguntou, rindo, Zaratustra. O adivinho respondeu: “Em torno da tua montanha sobem mais e mais as ondas da imensa miséria e da aflição: não tarda a erguer a tua barca e arrastar-te com ela”. Zaratustra calou-se, admirado. – “Não ouves, ainda? – continuou o adivinho. – Não sobe o abismo um zumbido, um rumor surdo?” Zaratustra permaneceu calado e escutou. Ouviu então um grito prolongado, soltado de uns para os outros abismos, pois nenhum deles o queria reter, tão funesto era o seu som.
Sinistro agoureiro, – disse afinal, Zaratustra – isto é um grito de angústia, e grito de um homem; provavelmente sai de um mar negro.
Que me importa, porém, a angústia dos homens! O último pecado que me está reservado... sabes como se chama?”
“Compaixão! – respondeu o adivinho, cujo coração transbordava, erguendo as mãos. – Ó! Zaratustra! Venho aqui fazer-te cometer o último pecado!”
Apenas pronunciadas estas palavras, tornou a ressoar o grito, mais prolongado e angustioso do que dantes, e já muito mais próximo. “Ouves, ouves, Zaratustra? – exclamou o adivinho. – A ti se dirige o grito, é por ti que chama: vem, vem, vem; já é tempo; não há um momento a perder!”
Zaratustra, entretanto, calava-se, perturbado e alterado. Por fim perguntou, como quem hesita interiormente: “E quem me chama lá de baixo?”
“Bem o sabes – respondeu vivamente o adivinho. – Por que te ocultas? É o homem superior que te chama em seu auxílio”.
“O homem superior! – gritou Zaratustra, admirado. – E que quer ele? Que quer o homem superior? O que que quer ele aqui?” E o corpo cobriu-se-lhe de suor.
O adivinho não respondeu à angústia de Zaratustra: escutava e tornava a escutar, inclinado para o abismo. Mas como o silêncio se prolongasse muito olhou para trás e viu Zaratustra de pé e a tremer.
“Zaratustra, – começou a dizer em voz triste: – não aparentes brincar de alegria. Embora quisesses dançar diante de mim e dar todos os teus saltos, ninguém me poderia dizer: “Olha, aí tens o baile do último homem alegre!”
Em vão subirá a esta altura quem procurar aqui esse homem: encontraria cavernas e grutas, esconderijos para a gente que se precisa ocultar, mas não poços de felicidade nem tesouros, nem novos filões áureos de ventura.
Ventura! – como encontrá-la entre semelhantes sepultados, entre tais eremitas!
Hei de buscar ainda a última felicidade nas Ilhas Bem-aventuradas e ao longe entre esquecidos mares?
Mas tudo é igual, nada merece a pena, são inúteis todas as pesquisas; também já não há Ilhas Bem-aventuradas?”
Assim suspirou o adivinho, mas ao ouvir o seu último suspiro, Zaratustra recuperou a serenidade e presença de espírito, como uma pessoa que regressa à luz saindo de um antro profundo. “Não! Não! Mil vezes não! – exclamou com voz firme, cofiando a barba.
– Isso sei-o eu muito melhor que tu. Ainda há Ilhas Bem-aventuradas! Não digas uma palavra, saco de tristezas!
Cessa de cair, nuvem chuvosa da amanhã! Não me vês já molhado pela tua tristeza e orvalhado como um cão?
Agora sacudo-me e fujo para longe de ti, para me secar: não te admires!
Pareço-te indelicado? Mas a minha corte está aqui!
Pelo que respeita ao teu homem superior, seja! Vou a correr procurá-lo por esses bosques: foi donde partiu o seu grito. Talvez o ameace alguma fera.
Está no meu domínio; não quero que lhe suceda nenhuma desgraça. E, na verdade, no meu domínio há muitas feras!
Dito isto, Zaratustra dispôs-se a partir. Então o adivinho exclamou: “És um velhaco, Zaratustra!
Bem sei: o que tu queres é livrar-te de mim! Preferes fugir para os bosques a perseguir animais monteses!
De que te servirá isso, porém? À noite tornarás a encontrar-me: estarei sentado na tua própria caverna, com a paciência e o peso de um madeiro: ali sentado, à tua espera”.
“Pois seja! – exclamou Zaratustra, afastando-se. – E o que me pertence na caverna, pertence-te também a ti, que és meu hóspede.
Se ainda lá encontrares mel, lambe-o todo, urso rabujento, e adoça a tua alma. E à noite estaremos alegres: alegres e contentes por ter terminado este dia! E tu mesmo deves acompanhar os meus cantos com as tuas danças, como se fosse o meu urso amestrado.
Julgas que não? Meneias a cabeça? Vai-te daí, velho urso! Também eu sou adivinho!”
Assim falava Zaratustra.


O Encantador

Na volta de umas penhas, Zaratustra viu perto de si e na parte baixa do caminho um homem que acenava como doido furioso e que acabou por se precipitar de bruços no solo. “Alto! – disse então Zaratustra consigo. – Deve ser este o homem superior; dele procedia aquele sinistro grito de angústia. Quero ver se o posso socorrer”.
Quando chegou, porém, ao sítio em que o homem estava deitado, deparou com um velho trêmulo de olhar fixo; e apesar de todas as tentativas de Zaratustra para o levantar, foram vãos os seus esforços. O infeliz parecia não notar que estivesse alguém junto de si; pelo contrário, não cessava de olhar para um e outro lado, fazendo gestos comovedores, como quem se vê abandonado, e apartado do mundo inteiro. Afinal, depois de muitas tremuras, sobressaltos e contorsões, começou a lamentar-se desta forma:
“Quem me dá calor? Quem me ama ainda? Vinde, mãos quentes! Vinde, corações ardentes!
“Caído, a tremer, como um moribundo cujos pés são aquecidos, estremecido, ai! por ignoradas febres, tiritando ante as aceradas flechas da geada, acossado por ti, pensamento! inefável! oculto! espantoso! caçador escondido por detrás das nuvens!
Ferido por ti, olho zombeteiro que me contemplas na escuridão! – Assim jazo, me curvo, me contorço, atormentado por todos os mártires eternos, ferido por ti, crudelíssimo, caçador, Deus desconhecido...
“Fere mais profundamente! Fere outra vez! Trespassa, arranca este coração! Para que é este martírio com setas rebotadas? Que olhas ainda, não cansado de humanos tormentos, com esses olhos maliciosos de fulgores divinos?
“Não queres matar, mas martirizar, martirizar somente? Para que martirizar-me a mim, Deus maldoso, Deus incógnito?
“Ah! aproximas-te rastejando em semelhante noite? Que queres? Fala! Persegues-me e cercas-me. Aproxima-te demais! Ouves-me respirar, espreitas o meu coração, ciumento! Mas, de quem tens ciúmes? Deixa-me, afasta-te daí! Para que é essa escada? Queres penetrar no meu coração, penetrar os meus mais secretos pensamentos! Insolente! Desconhecido! Ladrão! Que queres roubar? Que queres ouvir? Que te propõe arrancar com as tuas torturas, Deus verdugo? Ou terei de me arrastar na tua presença como um cão, entregando-te o meu amor, acorrentado e fora de mim?
“Em vão! Punge de novo, crudelíssimo aguilhão?
“Eu não sou um cão! apenas sou tua presa, caçador cruel entre os cruéis! O teu mais altivo prisioneiro, salteador, oculto atrás das nuvens!
“Fale de uma vez o que se esconde detrás dos relâmpagos! Fale o incógnito! Que queres de mim, postado aí à espreita no caminho?
“Que? Um resgate? Que queres de resgate?
“Pede muito – assim o aconselha o meu orgulho! – E fala pouco – aconselha-to o meu outro orgulho!
“Ah! A mim mesmo é que tu queres? A mim? A mim todo?
“Ah! E martirizas-me, insensato! E torturas-me o orgulho? Dá-me o amor, – quem me aquece ainda? Quem me tem amor ainda? Dá-me mãos quentes, dá-me corações ardentes, dá-te tu, crudelíssimo inimigo; sim, entrega-te a mim, ao mais solitário, a quem o gelo faz suspirar sete vezes até pelos mesmos inimigos...
“Foi-se. Até ele fugiu, o meu único companheiro, o meu grande inimigo, o meu desconhecido, o meu Deus verdugo!
“Não! Torna! Torna com os teus suplícios!
“Torna ao último dos solitários! Tôdas as minhas lágrimas correm em tua procura! E por ti desperta a derradeira chama do meu coração! Ó! torna, Deus incógnito! Minha dor! Última ventura minha!”



II

Neste ponto, porém, Zaratustra não se pôde conter mais tempo, agarrou no bordão e deu com todas as forças no que se lastimava.
“Detém-te! – gritou-lhe com riso colérico – detém-te, histrião, falso moedeiro! Inveterado embusteiro! Bem te conheço!
Hei de te largar fogo às pernas, sinistro encantador; sei muito bem haver-me com os da tua ralé!”
“Pára! – disse o velho, erguendo-se de repente. – Não me batas mais, Zaratustra!
Tudo isto não passou de um gracejo forte!
Estas coisas participam da minha arte: quis pôr-te à prova a ti mesmo, apresentando-te esta prova. E, verdade é que me penetraste bem os pensamentos!
Mas também... não é pequena a prova que te impuseste a ti mesmo. És rigoroso, sábio Zaratustra! Feres duramente com as tuas “verdades”; o teu nodoso bordão obriga-me a confessar... esta verdade!”
“Não me adules, histrião! – respondeu Zaratustra, sempre irritado e com semblante sombrio. – És falso; para que falas... de verdade?
Pavão, oceano de vaidade, que é que tu representavas diante de mim, sinistro encantador? Em quem devia eu crer quando te lamentavas assim?”
“Eu representava o redentor do espírito – disse o velho: tu mesmo inventaste noutro tempo esta expressão: – o poeta e o encantador que acaba por tornar o espírito contra si mesmo, o transformado, aquele a quem gelam a sua falsa ciência e a sua má consciência.
E, confessa francamente, Zaratustra: demoraste-te a descobrir os meus artifícios e mentiras! Acreditavas na minha miséria, quando me amparavas a cabeça; ouvi-te gemer: “Amaram-no pouco, muito pouco!”
Haver-te enganado a tal ponto era o que intimamente me regozijava a maldade”.
Zaratustra respondeu com dureza:
“A outros mais finos do que eu deves ter enganado. Eu não estou em guarda contra os enganadores; não tenho que tomar precauções: assim o quer a minha sorte.
Tu, porém... tens que enganar: conheço-te de sobra para o saber. As tuas palavras hão de ter sempre duplo, triplo, quádruplo sentido. O que me confessaste não era bastante verdadeiro nem bastante falso para mim.
Vil moedeiro falso, como havias de fazer outra coisa? Até a tua enfermidade encobririas, se te apresentasses nu ante o médico.
E acabavas de dourar a tua mentira diante de mim quando disseste: “Só o fiz por gracejo!” Também nisso havia seriedade; tu és até certo ponto como um redentor do espírito.
Sei perfeitamente calar-te: fizeste-te de encantador de toda a gente; mas, quanto a ti, já te não resta mentira nem astúcia; no que te diz respeito estás desencantado.
Alcançaste a desilusão como única verdade. Nenhuma palavra é já verdadeira em ti, a não ser a desilusão pegada à tua boca”.
“Mas quem és tu? – exclamou o velho, já agora com voz altaneira. – Quem tem o direito de me falar assim, a mim, que sou o maior dos viventes de hoje?” E os olhos faiscaram-lhe ao encarar Zaratustra. – No mesmo instante, porém, se transformou e disse com tristeza:
“Zaratustra, estou farto; cansam-me as minhas artes; eu não sou grande! Para que fingir? Mas tu bem o sabes: procurei a grandeza.
Eu queria simular de grande homem, e a muita gente convenci; mas esta mentira foi superior às minhas forças.
Zaratustra, em mim tudo é mentira; mas que sucumbo... isto é positivo!”
“Honra-te – respondeu Zaratustra, sombrio e desviando o olhar para o chão – honra-te o teres procurado a grandeza, mas deprime-te também. Tu não és grande.
Sinistro encantador, o melhor e mais honroso para ti é teres-te enfastiado de ti mesmo e haveres exclamado: “Não sou grande”.
Em atenção a isso, honro-te como um redentor do espirito: conquanto fosse por um instante, nesse instante foste verídico.
Diz-me, porém; que procuras tu aqui nos meus bosques e entre as minhas brenhas? E se te havias atravessado no meu caminho para me espreitar, que prova querias de mim?
Em que me querias tentar?”
Assim falava Zaratustra, e os olhos faiscavam-lhe. O velho encantador fez uma pausa e disse depois: “Acaso te tentei? Eu não faço mais do que... procurar.
Zaratustra, eu procuro alguém que seja sincero, reto, simples, alheio ao fingimento, um homem de toda a probidade, um vaso de sabedoria, um santo de conhecimento, um grande homem!
Porventura o ignoras, Zaratustra? Procuro Zaratustra!”
Então fez-se um silêncio entre os dois. Zaratustra, concentrando-se profundamente, cerrou os olhos; depois, virando-se para o encantador pegou-lhe na mão, disse-lhe delicada e astuciosamente:
“Está bem! Ali em cima encontra-se o caminho que conduz à caverna de Zaratustra. Na minha caverna podes procurar o que desejas encontrar.
E aconselha-te com os meus animais, a minha águia e a minha serpente: eles te ajudarão a procurar. A minha caverna é grande, contudo.
Verdade é que eu próprio... ainda não vi nenhum grande homem. Para o grande, ainda o olho do mais lince é demasiado grosseiro. Este é o reinado da populaça.
Já tenho visto tantos esticarem e inflarem enquanto o povo gritava: “Vede: este é um grande homem!” Mas, para que servem os foles? Deles apenas sai vento.
O sapo que incha demasiado acaba rebentando. Furar o ventre de um inchado é uma honesta distração. Ouvi isto, meus filhos!
O nosso hoje pertence à populaça: quem pode saber ainda o que é grande ou pequeno?
Quem procuraria ainda com êxito a grandeza? Um louco, quando muito; e os loucos são afortunados.
Procuras os grandes homens, estranho louco! Quem te ensinou tal coisa? Será hoje tempo oportuno para isso? Ó! malicioso investigador! Porque me tentas?”
Assim falava Zaratustra, com o coração consolado; e rindo, prosseguiu o seu caminho.


O Homem mais Feio

E Zaratustra continuou a correr pelas montanhas e pelas selvas, e os seus olhos esquadrinhavam sem cessar; mas em nenhuma parte via aquele que queria ver, o que clamava por socorro, atormentado por profunda angústia. Caminhava, todavia, muito satisfeito e cheio de gratidão. “Que boas coisas – disse – este dia me tem dado, para me indenizar de o ter começado tão mal! Que singulares interlocutores encontrei!
Hei de ruminar muito tempo as suas palavras como se fossem bons grãos; os meus dentes devem triturá-las e moê-las muitas vezes, até me correrem pela alma como leite.”
Mas quando deu volta a outro penhasco do caminho, mudou de súbito a paisagem, e Zaratustra entrou no reino da Morte. Surgiam ali negros e vermelhos penhascos, e não havia erva, árvores, nem canto de pássaros. Que era um vale que todos os animais desprezavam, até as feras; só uma espécie muito feia de grandes cobras verdes ia ali morar, quando envelhecia. Por isso os pastores chamavam aquele vale “Morte das serpentes”.
Zaratustra abismou-se em negras recordações, porque lhe parecia ter-se já encontrado naquele vale. E preocuparam-lhe o espirito coisas tão pesadas que foi demorando, demorando o passo até que acabou por parar e fechar os olhos.
Quando os abriu, viu qualquer coisa sentada à beira do caminho, qualquer coisa onde com muito trabalho se reconheceria a forma de um homem, qualquer coisa inexprimível. E Zaratustra sentiu enorme vergonha de seus olhos terem visto semelhante coisa. Ruborizando-se até à raiz dos cabelos, afastou os olhos e ergueu o pé para se retirar daquele sítio nefasto. Mas então se povoou de ruídos o tétrico deserto: porque se elevou do solo um gorgolejo como o que faz a água de noite em campos tapados; esse ruído acabou por se tornar voz humana e humana palavra. A voz dizia:
“Zaratustra! Zaratustra! Adivinha o meu enigma! Fala! Qual é a vingança contra a testemunha?
Eu atraio-te para trás; aqui há gelo resvaladiço. Cuidado, cuidado, não se te quebrem as pernas de orgulho!
Julgas-te sábio, orgulhoso Zaratustra!
Pois adivinha o enigma, adivinha o enigma que eu sou. Fala pois: quem sou eu?”
Mas quando Zaratustra ouviu estas palavras, que pensais se lhe passou na alma?
Viu-se dominado pela compaixão, e abateu-se de súbito como um carvalho que, depois de resistir muito tempo aos lenhadores, cai de repente e pesadamente com espanto dos próprios que queriam abatê-lo. Logo, porém, se ergueu do solo e o semblante tornou-se-lhe duro.
“Conheço-te bem – disse com voz de bronze: – és o assassino de Deus. Deixa-me ir embora.
Não suportaste aquele que te via sempre e até ao mais íntimo teu, mais feio dos homens! Vingaste-te dessa testemunha!”
Assim falava Zaratustra, e quis ir-se embora; mas o inexprimível segurou-o pela roupa e começou a gorgolejar de novo e a procurar as suas expressões: “Detém-te!” disse por fim.
“Detém-te! Não passes de largo! Compreendi qual foi o machado que te derrubou!
Glória a ti, Zaratustra, que estás outra vez de pé!
Adivinhaste – sei-o perfeitamente – quais eram os sentimentos do que matou Deus – do assassino de Deus – Fica. Senta-te aqui ao meu lado; não será em vão.
A quem queria eu encontrar senão a ti? Fica e senta-te. Mas não olhes para mim. Respeita assim... a minha fealdade!
Perseguem-me: agora tu és o meu último refugio. Não é que me persigam com o seu ódio ou seus esbirros. Ó! Zombaria então de tais perseguições! Estaria orgulhoso e satisfeito.
Todo o triunfo não tem sido até aqui dos que foram bem perseguidos?
E o que persegue bem facilmente aprende a seguir – não vai já... atrás?
Trata-se, porém, da sua compaixão...
Da compaixão deles é que eu fujo ao vir-me refugiar em ti. Defende-me, Zaratustra, último refúgio meu, único ser que me adivinhou.
Adivinhaste os sentimentos daquele que matou Deus.
Fica! E se és tão impaciente que te queiras ir embora, não tomes o caminho por onde eu vim. Esse caminho é mau.
Tens-me rancor porque há muito tempo que te falo imprudentemente? Porque te dou conselhos? Fica sabendo que eu, o mais feio dos homens, sou também o que tem o pé maior e mais pesado. Todo o caminho que pisei se tornou mau. Eu esmago e destruo os caminhos todos.
Bem vi, porém, que passavas por diante de mim em silêncio, e que te envergonhavas: nisso conheci Zaratustra.
Outro qualquer atirar-me-ia uma esmola, a sua compaixão com o olhar e a palavra. Eu, porém, não sou bastante mendigo para isso: adivinhaste.
Eu sou demasiado rico para isso, rico em coisas grandes, e formidáveis, as mais feias e inexprimíveis! A tua vergonha honra-me, Zaratustra!
Difícil me foi sair da multidão dos compassivos para encontrar o único que ensina hoje que “a compaixão é importuna” – para te encontrar a ti, Zaratustra.
Seja piedade de um Deus ou piedade dos homens, a compaixão é contrária ao pudor. E não querer auxiliar pode ser mais nobre do que essa virtude que assalta pressurosa e solícita.
Mas a isso mesmo é que toda a gente pequena chama hoje virtude, a compaixão; tal gente não guarda respeito à grande desgraça, nem à grande felicidade, nem à grande queda.
Deito o meu olhar por cima dos pequenos, como o de um cão por cima dos buliçosos rebanhos de ovelhas. É gentinha de boa vontade, parda e peluda.
Tempo demais se deu razão a essa gentinha, e assim se acabou por se lhes dar igualmente o poder. Agora pregam: “Só o que a gentinha acha bom, é que é bom”.
E hoje chama-se “verdade” ao que dizia o pregador, que saiu das fileiras dessa gente, aquele santo raro, aquele advogado dos pequenos que afirmava por si só “eu sou a verdade”.
E aquele homem imodesto que ao dizer “eu sou a verdade”, pregou um erro mais que mediano, foi a causa de se pavonearem há muito as pessoas pequeninas.
Acaso se respondeu alguma vez mais cortesmente a uma pessoa falha de modéstia?
E tu, Zaratustra, todavia, passaste por diante dele dizendo: “Não! Não! Mil vezes não!”
Tu deste a voz de alarme contra o seu erro; foste o primeiro a dar a voz de alarme contra a compaixão; não a todos, nem a nenhum, mas a ti e à tua espécie.
Envergonhas-te da vergonha dos grandes sofrimentos: e quando dizes: “Da compaixão vem uma grande nuvem, alerta humanos”. E quando ensinas: “Todos os criadores são duros, todo o grande amor está por cima da sua compaixão”, parece-me conheceres bem os sinais do tempo, Zaratustra!
Mas tu mesmo... livra-te também da tua própria piedade. Que há muitos que se encaminham para ti, muito dos que sofrem, dos que duvidam, dos que desesperam, dos que se afogam e gelam...
Ponho-te também em guarda contra mim. Adivinhas o meu melhor e o meu pior enigma, adivinhaste-me a mim mesmo e o que tenho feito. Conheço o machado que te derruba.
Foi preciso, contudo, ele morrer: via com olhos que tudo viam; via as profundidades e os abismos do homem, toda a sua oculta ignomínia e fealdade.
A sua compaixão não conhecia a vergonha; introduzia-se-me nos mais sórdidos recantos. Foi mister morrer o mais curioso, o mais importuno, o mais compassivo.
Sempre me via; quis vingar-me de tal testemunha ou deixar de viver.
O Deus que via tudo, até o homem, esse Deus devia morrer! O homem não suporta a vida de semelhante testemunha”.
Assim falava o homem mais feio. E Zaratustra levantou-se e dispôs-se a partir, porque estava gelado até à medula, e disse:
“Tu, inexprimível, puseste-me em guarda contra o teu caminho. Para te recompensar recomendo-te o meu. Olha: ali em cima fica a caverna de Zaratustra.
A minha caverna é grande e profunda e tem muitos recantos; o mais escondido encontra lá o seu esconderijo. E perto há cem rodeios e cem fugas para os animais que se arrastam, revolteiam e saltam.
Tu, que te vês repelido e que te repeliste a ti mesmo, não queres viver mais entre os homens e da compaixão dos homens? Pois bem! Faz como eu! Assim aprenderás também comigo, só o que procede aprende.
E fala logo e em primeiro lugar aos meus animais! Sejam para nós dois os verdadeiros conselheiros o animal mais ativo e o animal mais astuto!”
Assim falou Zaratustra, e prosseguiu o seu caminho ainda mais meditabundo e vagaroso do que dantes, porque se interrogava sobre muitas coisas a que lhe era difícil responder.
“Como o homem é mesquinho! – pensava interiormente. – Que feio, que agonizante e quão cheio de oculta vergonha!
Dizem que o homem se ama a si mesmo! Ai! Como deve ser grande esse amor próprio!
Quanto desprezo tem contra si!
Também aquele se ama desprezando-se: é para mim um grande enamorado e um grande desprezador.
Nunca tropecei com ninguém que se desprezasse mais profundamente. Isto também é elevação. Ó! infortúnio! Talvez fosse aquele o homem superior cujo grito ouvi!
Eu amo os grandes desprezadores. Mas o homem é uma coisa que deve ser superada”.
Assim falava Zaratustra.



O Mendigo Voluntário

Quando Zaratustra se apartou do mais feio dos homens, teve frio, sentiu-se só: tantas coisas geladas e solitárias lhe cruzaram o espírito que até os membros se lhe arrefeceram.
Subindo, porém, cada vez mais por montes e vales, e ao atravessar áridos pedregais, que provavelmente tinham sido noutras épocas leito de um rio impetuoso, sentiu-se de repente mais vivo e animado.
“Que me sucedeu? – perguntou a si mesmo.
– O que quer que seja cálido e vivo me reconforta; deve andar próximo de mim.
Já estou menos só; companheiros e irmãos rondam inconscientemente em torno de mim; o seu quente hálito agita a minha alma”.
Mas quando olhou em roda procurando os consoladores da sua soledade, viu que eram vacas, que estavam umas ao lado das outras numa elevação; fora a proximidade e o bafo desses animais que lhe haviam reanimado o coração. As vacas, entretanto, parecia escutarem atentamente alguém que falasse, e não faziam caso de quem se aproximava.
Já muito perto delas, Zaratustra ouviu sair do centro claramente uma voz de homem, e era visível, pois todas viravam a cabeça para o seu interlocutor.
Então Zaratustra correu para o montículo e dispersou os animais, porque receava houvesse sucedido alguma desgraça a alguém, coisa que dificilmente poderia remediar a compaixão das vacas. Enganava-se, porém; o que viu foi um homem sentado no solo, que parecia exortar os animais a não terem medo dele. Era um homem agradável; um pregador das montanhas, cujos olhos predicavam a própria bondade. “Que procuras aqui?” – exclamou Zaratustra, admirado.
“Que procuro aqui! – respondeu o homem. – O mesmo que tu, curioso! Isto é, a felicidade na terra.
Por isso queria aprender com estas vacas. Que, fica sabendo, há meia manhã que lhes estou falando, e iam-me responder. Por que as espantaste?
Se não tornarmos para trás e não fizermos como as vacas, não poderemos entrar no reino dos céus. Que há uma coisa que deveríamos aprender delas: é ruminar.
E, claro, de que serviria o homem alcançar o mundo inteiro, se não aprendesse uma coisa, se não aprendesse a ruminar?
Não perderia a sua grande aflição.
Essa grande aflição que hoje se chama tédio. Quem não terá hoje o coração, a boca e os olhos cheios de tédio? Também tu. Também tu. Mas olha para estas vacas!”
Assim falou o pregador da montanha; depois virou os olhos para Zaratustra – ponque até então os fixara amorosamente nos animais.
Logo se transformou, porém: – “Com quem estou falando? – exclamou, assustado, saltando do solo.
Este é o homem sem tédio, Zaratustra em pessoa, o que triunfou do grande tédio; são os seus olhos, a sua boca, e o próprio coração de Zaratustra”.
E assim falando beijou as mãos daquele a quem falava, com olhar afetuoso, e em tudo se comportava como uma pessoa a quem cai do céu inopinadamente um precioso dom ou algum tesouro. Entretanto as vacas contemplavam tudo aquilo com admiração.
“Não fales de mim, homem singular e atraente! – respondeu Zaratustra, esquivando-se aos afagos. – Primeiro que tudo falai-me de ti. Não serás tu o mendigo voluntário que noutro tempo repudiou uma grande riqueza?
Não serás aquele que, envergonhado da riqueza e dos ricos, fugiu para junto dos mais pobres a dar-lhes a sua abundância e o seu coração? Mas eles nada disso te aceitaram”.
“Não me aceitaram – disse o mendigo voluntário; já o sabes. Por isso acabei por vir ter com os animais e com estas vacas”.
“Assim aprendeste – interrompeu Zaratustra – que é muito mais difícil dar bem do que aceitar bem; que dar bem é uma arte, é a última e a mais astuta mestria da bondade”.
“Especialmente em nossos dias – respondeu o mendigo voluntário – especialmente hoje que tudo quanto é baixo se ergue altivamente orgulhoso da sua raça; a raça plebéia.
Já deves saber que chegou a hora da grande insurreição da populaça e dos escravos, a funesta insurreição, vasta e lenta, que cresce continuamente.
Agora os pequenos revoltam-se contra todos os benefícios e os dons mesquinhos; acautelam-se os que são demasiados ricos!
Há frascos bojudos que gotejam pouco por estreitos gargalos... a frascos assim é que se quer hoje cortar a cabeça.
Cobiça ansiosa, inveja acerba, vingança reconcentrada, orgulho plebeu; tudo isso me assaltou à cara. Não é já verdade os pobres serem bem-aventurados. O reino do céu está entre as vacas”.
“E por que não entre ricos?” – perguntou tentadoramente Zaratustra, impedindo que as vacas acariciassem com o seu hálito o homem agradável.
“Por que me tentas? – respondeu este. – Tu mesmo o sabes muito melhor que eu.” Que foi que me impeliu para os mais pobres, Zaratustra? Não era a aversão que sentia pelos mais ricos dos nossos? pelos forçados da riqueza que aproveitam os seus lucros em todas as varreduras, com olhos frios e olhares concupiscentes? por essa chusma que exala mau cheiro até o céu? por essa dourada e falsa populaça, cujos ascendentes eram gente de unhas compridas, aves carnívoras, ou trapaceiros, com mulheres complacentes, lascivas e esquecediças, pouco diferente de rameiras?
Populaça acima! Populaça abaixo! Que significam já hoje os “pobres”, os “ricos”! Eu esqueci essa diferença e acabei por fugir para longe, cada vez mais longe, até vir ter com estas vacas”.
Assim falou o homem agradável, e ao pronunciar aquelas palavras respirava ruidosamente, banhado em suor: tanto que as vacas tornaram a admirar-se. Zaratustra, porém, enquanto o homem falava assim duramente, fitava nele os olhos, sorrindo e movendo silenciosamente a cabeça.
“Pregador da montanha, estás-te violentando ao empregar expressões tão duras. A tua boca e os teus olhos não nasceram para tais durezas.
E o teu estômago tampouco, segundo me parece, resistem-lhe essa cólera, esse ódio e essa efervescência. O teu estômago precisa coisas mais brandas: não és carnívoro.
Antes me pareces herbívoro. Talvez mastigues grão. Em todo caso não és feito para os gozos carnívoros, e agrada-te o mel.
“Adivinhaste-me perfeitamente – respondeu o mendigo voluntário, com o coração aliviado. – Agrada-me o mel e também môo grão, porque procurei o que tem bom gosto e purifica o hálito; também uma tarefa diária e uma ocupação para a boca.
Estas vacas de certo foram muito mais longe: inventaram o ruminar e cair no contrário. Assim se livram de todos os pensamentos pesados que incham as entranhas”.
Zaratustra disse: “Pois então deverias ver também os meus animais, a minha águia e a minha serpente que não têm rival na terra.
Olha: aquele é o caminho que conduz à minha caverna: sê meu hóspede por esta noite. E fala com os meus animais da felicidade dos animais... até que eu regresse.
Agora, porém, chama-me apressado para longe de ti um grito de angústia. Também hás de encontrar na minha morada mel fresco, favos de dourado mel de glacial frescura: come-o!
Agora despede-te pressuroso das tuas vacas, homem singular e atraente, embora te custe; pois são os teus melhores amigos e mestres!”
“À exceção de um só, a quem prefiro – respondeu o mendigo voluntário. – Tu és bom, e ainda melhor que uma vaca, Zaratustra!”
“Foge daqui! Vil adulador! exclamou, colérico, Zaratustra. – Por que me lisonjeias com tal mel de elogios e de lisonjas?”
“Foge, foge para longe de mim!” gritou outra vez, brandindo o bordão na direção do mendigo adulador. Este, porém, fugiu com presteza.



A Sombra

Apenas o mendigo voluntário fugira, Zaratustra, outra vez consigo mesmo, ouviu uma voz desconhecida gritar: “Pára, Zaratustra! Espere! Sou eu, Zaratustra; eu, a tua sombra!” Zaratustra, porém, não esperou, porque o invadiu um grande desgosto ao ver a multidão que se amontoava nas montanhas. “Que foi feito da minha soledade? – disse.
É demais; estas montanhas formigam; o meu reino já não é deste mundo; preciso novas montanhas.
Chama-me a minha sombra? Que me importa a minha sombra? Corra atrás de mim... e eu adiante dela!”
Assim dizia consigo Zaratustra, fugindo; mas o que estava atrás dele seguia-o, de forma que eram três a correr um atrás do outro: primeiro o mendigo voluntário, a seguir Zaratustra, e em último lugar a sua sombra.
Não corriam há muito ainda quando Zaratustra caiu em si, reparou na sua loucura, e de uma sacudidela expulsou para longe de si todo o despeito e aborrecimento.
“Que! exclamou. – Não têm acontecido sempre entre nós outros, santos e eremitas, as coisas mais risíveis?
Na verdade, a minha loucura cresceu nas montanhas! Agora ouço soar, umas atrás das outras, seis velhas pernas de loucos!
Terá Zaratustra o direito de se assustar com uma sombra? E acabo por acreditar que ela tem as pernas mais compridas que as minhas”.
Assim falava Zaratustra rindo com vontade.
Deteve-se, virou-se repentinamente e quase atirou ao chão a sombra que o perseguia: tão agarrada ia aos seus tacões e tão fraca era. Ao examiná-la admirou-se como se de repente lhe houvesse aparecido um fantasma: tão fraco, negro e anão era o seu perseguidor, e tão arruinado lhe parecia.
“Quem és? – perguntou impetuosamente Zaratustra. – Que fazes aqui? E por que te chamas minha sombra? Não me agradas”.
“Perdoa-me – respondeu a sombra – ser eu, e não te agradar, felizmente, Zaratustra! Isso diz muito em teu abono e a favor do teu bom gosto.
Eu sou um viajante que já há muito tempo te segue as pegadas: sempre a caminhar, mas sem destino nem lugar; de forma que pouco me falta para ser judeu errante, salvo não ser judeu nem eterno.
Que? hei de caminhar sempre? Hei de me ver arrastado sem trégua pelo remoinho de todos os ventos? Ó! terra, tornaste-te demasiado redonda!
Já me coloquei em todas as superfícies; à semelhança do cansado pó; adormeci nos espelhos e nas vidraças. Tudo recebe de mim; ninguém me dá; eu diminuo, quase pareço uma sombra.
Mas a quem tenho seguido e perseguido mais tempo tem sido a ti, Zaratustra; e conquanto me tenha ocultado de ti, fui, todavia, a tua melhor sombra; onde quer que parasses, parava eu também.
Contigo vaguei pelos mais longínquos e frios mundos, como um fantasma que se compraz em correr por caminhos invernais e de gelo.
Contigo aspirei a todo o proibido, a todo o pior e mais longínquo; e se alguma virtude há em mim, é não temer nenhuma proibição.
Contigo aniquilei quanto o meu coração adorou, derribei todas as barreiras e todas as imagens, correndo após os mais perigosos desejos: realmente, passei uma vez por todos os crimes.
Contigo esqueci a fé nas palavras, os valores, e os grandes nomes. Quando o demônio muda de pele, não muda ao mesmo tempo de nome? Que esse nome é apenas pele. Talvez mesmo o demônio não seja mais... que uma pele.
Nada é verdade; tudo é permitido; assim me consolei a mim mesmo. Lancei-me nas águas mais frias, de coração e de cabeça. Ai! Quantas vezes me vi nu e encarnado em caranguejo!
Ai! Para onde foi tudo o que é bom, e toda a fé nos bons? Ai! para onde fugiu aquela inocência enganadora que dantes possuí, a inocência dos bons e das suas nobres mentiras?
Com demasiada freqüência pisei a verdade, e ela então saltou-me ao rosto. As vezes julgava mentir, e o caso é que ó então aflorava ai verdade.
Demasiadas coisas se me tornaram claras; agora já me não importam. Já nada vive do que eu amo. Como poderia amar-me ainda a mim mesmo?
Viver como me agrade, ou não viver de modo nenhum, eis o que quero, eis o que quer também o mais santo.
Mas, ó! desventura! Como poderia eu satisfazer-me ainda?
Acaso tenho... um fim? Um porto para onde encaminhe a minha vela?
Um bom vento? Ai! Só o que sabe onde vai sabe também qual é o seu vento, qual é o seu vento próspero.
Que me resta? Um coração fatigado e impertinente, uma vontade instável, asas trêmulas, uma espinha quebrada. Esse afã de correr em busca da minha morada, sabes Zaratustra? esse afã foi a minha obsessão: devora-me.
Aonde está... a minha morada? Eis o que pergunto, o que procuro, o que procurei e não encontrei.
Ó! eterno “em toda a parte!” ó! eterno em “parte nenhuma”, ó! eterno... “em vão!”
Assim falava a sombra, e o semblante de Zaratustra dilatava-se ao ouvi-la. “És a minha sombra! – disse afinal, com tristeza.
Não é pequeno o teu perigo, espírito livre e vagabundo! Tiveste mau dia: cuidado não se lhe siga uma noite pior.
Vagabundos como tu acabam por se encontrar bem até num cárcere. Já alguma vez viste como dormem os criminosos presos? Dormem tranqüilamente: fruem nova segurança.
Olha, não acabe por se apoderar de ti uma fé acanhada, uma ilusão dura e severa! Que atualmente tenta e te reduz o que é estreito e sólido.
Perdeste o alvo, desgraçado! Como te poderias consolar dessa perda? Por isso perdeste também o caminho!
Pobre vagabundo, espírito volúvel, mariposa fatigada! Queres ter esta noite descanso e asilo? Vai para a minha caverna!
Por ali acima é o caminho que conduz à minha caverna. E agora quero tornar a fugir de ti. Já pesa sobre mim uma como sombra.
Quero correr sozinho para tudo aclarar em torno de mim. Por isso tenho ainda que mover alegremente as pernas durante muito tempo. Esta noite... com certeza... há de haver baile na minha habitação!”
Assim falava Zaratustra.


O “Homem Superior”

I

Quando pela primeira vez estive com os homens cometi a loucura do solitário, a grande loucura: fui para a praça pública.
E como falava a todos, não falava a ninguém: e de noite tinha por companheiros volatins e cadáveres; eu próprio era quase um cadáver!
A nova manhã trouxe-me uma nova verdade: aprendi então a dizer: “Que me importam a praça pública e a populaça e as orelha compridas da populaça?”
Homens superiores, aprendei isto comigo: na praça pública ninguém acredita no homem superior. E se teimais em falar lá, a populaça diz: “Todos somos iguais”.
“Homens superiores – assim diz a populaça: – não há homens superiores: todos somos iguais; perante Deus um homem não é mais do que outro: todos somos iguais!”
Perante Deus! Mas agora esse Deus morreu; e perante a populaça nós não queremos ser iguais. Homens superiores, fugi da praça pública!



II

Perante Deus! Mas agora esse Deus morreu! Homens superiores, esse Deus foi o vosso maior perigo.
Ressucitastes desde que ele jaz na sepultura. Só agora torna o Grande Meio-Dia; agora torna-se senhor o homem superior.
Coompreendeis esta palavra, meus irmãos? Assustai-vos: apodera-se-vos do coração a vertigem? Abre-se aqui para vós o abismo? Ladra-vos o cão do inferno?
Homens superiores! Só agora vai dar à luz a montanha do futuro humano. Deus morreu: agora nós queremos que viva o Super-homem.



III

Os mais preocupados perguntam hoje: “Como se conserva o homem?” Mas Zaratustra pergunta – e é o primeiro e único a fazê-lo: – “Como será o homem superado?”
O Super-homem é que me preocupa; para mim é ele o primeiro e o único, e não o homem: não o próximo, o mais pobre, nem o mais aflito, nem o melhor.
Meus irmãos, o que eu posso amar no homem é ele ser uma transição e um fim. E em vós também há muitas coisas que me fazem amar e esperar.
Desprezastes, homens superiores: é isso que me faz esperar: porque os grandes desprezadores são também os grandes reverenciadores.
Desesperaste, coisa que merece grande respeito; porque não aprendeste a render-vos, nem aprendeste a ser prudentes.
Hoje, os pequenos tornaram-se senhores: todos pregam a resignação e a modéstia e a prudência, e a aplicação, e as considerações, e as virtudes pacatas.
O que é que de espécie feminil, o que procede de servil condição, e mormente a turba plebéia, é o que quer agora assenhorear-se do destino humano. Horror! Horror! Horror!
Esse pergunta uma e outra vez, sem se cansar: “Como se conservará o homem melhor, mais tempo e mais agradavelmente? “Assim são hoje os senhores”.
Ó! meus irmãos! Subjugai-me esses senhores atuais, subjugai-me essa gentinha: é o maior perigo do Super-homem.
Homens superiores, dominai as virtudes enganosas, as considerações com os grãos de areia, o bulício de formigas, a ruim complacência, a “felicidade dos outros!”
A ter que vos renderdes preferi desesperar.
Amo-vos deveras, homens superiores, porque hoje não sabeis viver! Pois assim viveis... melhor!



IV

Tendes valor, meus irmãos? Estais decididos? Não falo de valor, perante testemunhas, mas de valor, de solitários, valor de águias, do que não tem por espectador nenhum deus.
As almas frias, os cegos, os bêbados, não têm o que eu chamo coração. Coração tem aquele que conhece o medo, mas domina o medo; o que vê abismo, mas com arrogância.
O que vê o abismo, mas com olhos de águia; o que se prende ao abismo com garras de águia: é este o valoroso.



V

“O homem é mau”. Assim falavam os outros sábios para consolo meu. Ai! Se isto fosse verdade ainda hoje! Que o mal é a melhor força do homem.
“O homem deve-se fazer melhor e pior”: é isso o que eu predico, pela minha parte! O maior mal é necessário para o maior bem do Super-homem.
Padecer pelos pecados dos homens podia ser bom para o tal pregador dos humildes.
Eu, porém, rejubilo com o grande pecado como minha maior consolação.
Estas coisas não são ditas para a orelhas compridas; e nem toda a palavra convém a toda a boca. Isto são coisas sutis e afastadas: não as devem apanhar patas de carneiros.



VI

Homens superiores: acreditais que estou aqui para fazer bem ao que vós fizestes mal?
Ou que quero daqui por diante deitar mais comodamente os que sofrem? Ou ensinar-vos, a vós, que andais errantes e extraviados e perdidos na montanha, caminhos mais fáceis?
Não! Não! Mil vezes não! É preciso que morram cada vez mais e os melhores da vossa espécie: porque é preciso que o vosso destino seja. cada vez mais rigoroso. Só assim...
Só assim cresce o homem até à altura em que o raio o fere e aniquila! Há suficiente altura para o raio!
A minha inteligência e o meu anelo tendem para o raio, para o durável, para o afastado: que me importaria a vossa mesquinha, comum e breve fraqueza?
Para mim ainda não sofreis bastante. Pois sofreis por vós; ainda não sofrestes pelo homem. Mentiríeis se dissesseis o contrário! Vós não sofreis pelo que eu sofri.



VII

Não me basta que o raio já não prejudique.
Não quero desviá-lo; quero que aprenda a trabalhar para mim.
A minha sabedoria acumula-se há muito tempo como uma tempestade; cada vez se torna mais tranqüila e sombria. Assim faz toda a sabedoria que há de chegar a engedrar o raio.
Para estes homens de hoje não quero ser nem chamar-me luz. A estes... quero cegá-los. Raio da minha sabedoria, cega-os!



VIII

Nada quereis superior às vossas forças: adoecem de deplorável hipocrisia os que querem coisas superiores às suas forças.
Mormente quando querem grandes coisas! Que esses moedeiros falsos, esses cômicos sutis despertam a desconfiança pelas grandes coisas, e acabam por serem falsos consigo mesmos, gente de olhar de revés, entes retrógrados, disfarçados com palavras solenes, de virtudes aparatosas, de obras vistosas.
Muito cuidado com eles, homens superiores!
Para mim nada é hoje mais precioso e raro do que a probidade.
Não pertence isto hoje à populaça? Pois a populaça não sabe o que é grande, o que é pequeno, o que é reto nem o que é honrado: é inocentemente tortuosa; mente sempre.



IX

Homens superiores! Homens animosos! Homens francos! Abri hoje uma salutar desconfiança! E conservai secretas as vossas razões; porque isto hoje pertence à populaça.
O que a populaça aprendeu a crer sem razão quem o poderia derrubar à sua vista com razão?
Na praça pública convence-se com gestos. As razões inspiram desconfiança à populaça.
E se alguma vez triunfa lá a verdade, perguntai a vós mesmos com salutar desconfiança? “Que grande erro lutaria em prol dela?”
Livrai-vos também dos doutos! Odeiam-vos porque são estéreis! Têm olhos frios e secos, aos quais todo o pássaro parece depenado.
Gabam-se de não mentir; mas a incapacidade de mentir está ainda muito longe do amor à verdade. Acautelai-vos!
A ausência de ardor difere muito do conhecimento. Eu não creio nos espíritos frios. O que pode mentir ignora o que é a verdade.



X

Se quereis subir, servi-vos das vossas pernas! Não vos deixeis levar ao alto, não vos senteis nas costas nem na cabeça de outrem!
Montastes a cavalo! Galopas agora em bom passo até o fim? Bem, meu amigo! Mas o teu pé coxo vai também a cavalo!
Quando chegares ao teu fim, quando desceres do cavalo, homem superior, tropeçarás precisamente na tua altura.



XI

Homens superiores, homens que criais! Não se concebe senão ao teu próprio filho.
Não vos deixeis induzir em erro! Quem é pois, o vosso próximo? E também fazeis as coisas “pelo próximo”! Não crieis, contudo, por ele.
Esquecei esse “por” vós todos que criais: a vossa virtude quer justamente que nada façais “por” nem “devido a” nem “porque”.
Precisais cerrar os ouvidos a essas palavras falsas.
O “pelo próximo” não passa de virtude dos pequenos, dos que dizem “assim como fizeres assim acharás” e “uma mão lava a outra”: tal gente não tem o direito nem a força do vosso egoísmo.
No vosso egoísmo, criadores, há a previsão e a precaução da mulher prenhe! O que ainda ninguém viu com os olhos, o fruto, é isso que o vosso amor protege, conserva e alimenta.
Onde está todo o vosso amor, no vosso filho, está também toda a vossa virtude! A vossa obra, a vossa vontade, eis o vosso “próximo”: não vos deixeis induzir a falsos valores!



XII

Homens superiores, homens que criais! Quem quer que há de dar à luz está enfermo; mas o que deu à luz acha-se impuro.
Perguntais às mulheres: não se dá luz por gosto. A dor faz cacarejar as galinhas e os poetas.
Em vós, que criais, há muitas impurezas. É que tivestes que ser mães.
Um novo filho: ó! Quantas impurezas vieram ao mundo! Afastai-vos! O que dá à luz deve purificar a alma.



XIII

Não queirais ser mais virtuosos do que vo-lo consentem as próprias forças. E não exijais de vós coisa que seja inverossímil.
Segui as pisadas que deixou já a virtude de vossos pais. Como querereis subir tanto, se a virtude de vossos pais não subisse convosco?
Mas aquele que quiser ser o primeiro, livre-se bem de não ser o último. E não coloqueis a santidade onde estejam os vícios de vossos pais.
Que sucederia se aquele cujos progenitores foram afeiçoados às mulheres, aos vinhos fortes e aos javalís, exigisse de si castidade?
Seria loucura! Muito me parece isso para semelhante homem, se é homem de uma só mulher, ou de duas ou de três.
E se fundasse conventos, eu diria da mesma maneira: Para quê? É uma nova loucura.
Fundou para si mesmo uma casa de correção e um refúgio. Bom proveito! Eu, porém, não acredito nisso.
Na soledade cresce o que cada qual leva consigo, inclusive a besta inferior. Por isso a muitos é preciso afastá-los da soledade.
Terá havido até hoje na terra coisa mais impura do que um santo desterro?



XIV

Tímidos, envergonhados, encolhidos, como o tigre que falha uma investida, assim vos vi fugir amiúde, homens superiores. Errastes uma partida.
Mas isso que vos importa, jogadores de dados? Não aprendestes a jogar e a lograr-vos como se deve jogar e lograr? Não estamos sempre sentados a uma grande mesa de logro e de jogo?
E por se vos haverem malogrado grandes coisas, haveis de ser entes malogrados? E por vós o serdes, sê-lo-á por isso o homem?
Mas se o homem é um ser malogrado, então que importa?



XV

Quanto mais elevada no seu gênero é uma coisa, mais raro é o seu logro. Vós, homens superiores, que vos encontrais aqui, não sois todos seres malogrados?
Coragem! Isso que importa? Quantas coisas são ainda possíveis! Aprendei a rir-vos de vós mesmos; é mister rir!
Que se em muito que falais não acertardes mais que em metade, pois estais meio-truncados, nem por isso deixa de se agitar a resolver em vós outros o futuro do homem.
O mais remoto e profundo que há no homem, a sua altura estelar e a sua força imensa, todas estas coisas se chocam umas com as outras na vossa marmita em ebulição.
E muito mais de uma marmita rebenta! Aprendei a rir-vos de vós mesmos, como é preciso rir! Ó! homens superiores! Quantas coisas são ainda possíveis!
E realmente, quantas coisas se alcançaram já!
Como esta terra é rica de coisas boas e perfeitas e afortunadas!
Rodeai-vos de coisas boas e perfeitas, homens superiores.
A sua dourada madureza cura o coração. As coisas perfeitas ensinam-nos a esperar.



XVI

Qual tem sido hoje, na terra, o maior pecado? Não foi a palavra daquele que disse: “Pobres dos que riem aqui”...?
Seria porque não encontrava na terra nenhum motivo de riso? Então procurou mal.
Até uma criança encontra aqui motivos.
Esse... não amava bastante, senão amar-nos-ia também a nós, risonhos! Mas anatematizava-nos e odiava-nos, prometendo-nos gemidos e ranger de dentes.
Por se não amar é logo maldizer? Isso é coisa de mau gosto. E foi o que fez aquele intolerante. Saira da populaça.
Ele é que não amava bastante; senão irritar-se-ia menos por não ser amado.
O grande amor não quer amor: quer mais.
Afastai-vos do caminho de todos esses intolerantes! É gente pobre, enferma, plebéia; olha esta vida malignamente, dão mau olhado à terra.
Afastai-vos do caminho de todos esses intolerantes! Pesam-lhes os pés e o coração; não sabem dançar. Como a terra há de ser leve para tal gente!



XVII

Todas as coisas boas se aproximam do seu fim por maneira tortuosa. Como os gatos, arqueiam o lombo e rosnam interiormente, recreando-se com a sua próxima felicidade; todas as coisas boas riem.
O modo de andar de uma pessoa revela o seu caminho. Vede-me andar a mim! Aquele que se aproxima do seu fim, dança.
E eu certamente não me converti em estátua nem me encontro postado como uma coluna, rígido, entumecido, petrificado; gosto da carreira veloz.
E embora haja na terra atoleiros e denso nevoeiro, aquele que tem os pés leve corre e dança por cima da lama como sobre gelo liso.
Elevai; elevai cada vez mais os vossos corações, meus irmãos! E não vos esqueçais das pernas também. Alçai também as pernas, bons bailarinos, e erguei também a cabeça!



XVIII

Esta coroa do risonho, esta coroa de rosas, eu mesmo a cingí, eu próprio canonizei o meu riso.
Ainda não encontrei ninguém capaz de fazer outro tanto.
Eu, Zaratustra, o dançarino, Zaratustra, o leve, o que agita as suas asas pronto a voar, acenando a todas as aves, ligeiro e ágil, divinamente leve e ágil; eu, Zaratustra, o adivinho, Zaratustra, o risonho, nem impaciente nem intolerante, afeiçoado aos saltos eu mesmo cingí esta coroa.



XIX

Elevai, elevai cada vez mais os vossos corações, meus irmãos! E não vos esqueçais também das pernas! Alçai as pernas, bons bailarinos, e suster-vos-eis até a cabeça.
Também animais pesados conhecem a ventura; há cambaios de nascimento que forcejam singularmente à maneira de um elefante que tentasse suster-se de cabeça.
Mas vale mais estar doido de alegria do que de tristeza; vale mais dançar pesadamente do que andar claudicando. Aprendei, pois, comigo a sabedoria: até a pior das coisas tem dois reversos, até a pior das coisas tem pernas para bailar; aprendei, pois, vós, homens superiores, a afirmar-vos sobre boas pernas.
Esquecei a melancolia e todas as tristezas da populaça. Como hoje me parecem tristes os arlequins plebeus. Mas isto hoje pertence à populaça.



XX

Fazei como o vento quando se precipita das cavernas montanhosas; quer dançar à sua vontade. Os mares tremem e saltam à sua passagem.
Louvado seja aquele que dá asas aos burros, e ordenha as leoas, esse espirito bom e indômito que chega como um furacão para tudo o que é de hoje, para toda a populaça!
Louvado seja o inimigo de todas as folhas murchas; esse espírito de tempestade, esse espírito selvagem, bom e livre que dança nos atoleiros como no meio de prados!
Bendito seja o que odeia os cães da populaça e a toda essa ralé malograda e sombria! Bendito seja esse espirito de todos os espíritos livres, a tempestade risonha que sopra o pó nos olhos de todos que vêm negro e estão ulcerados.
Homens superiores, o pior que tendes é não haver aprendido a dançar como é preciso dançar: a dançar por cima das vossas cabeças! Que importa não terdes sido felizes?
Quantas coisas são ainda possíveis!
Aprendei, pois, a rir por cima de vós.
Elevai, elevai cada vez mais os vossos corações, bons bailarinos! E não esqueçais também o belo riso!
Esta coroa do risonho, esta coroa de rosas, lanço-vô-la eu, meus irmãos! Canonizei o riso; aprendei, pois, a rir, homens superiores!”



O Canto da Melancolia

I

Quando Zaratustra pronunciou estes discursos, encontrava-se junto da entrada da sua caverna; mas, às últimas palavras, desapareceu de diante dos hóspedes e fugiu um instante para o ar livre.
– “Ó! aromas puros! – exclamou.
Ó! tranqüilidade benéfica! Mas onde estão os meus animais? Vinde, vinde, águia e serpente minhas!
Dizei-me, todos aqueles homens superiores... cheiram bem?
Ó! aromas puros! Só agora sei e sinto quanto vos amo, animais meus!”
E Zaratustra tornou a dizer: “Quanto vos amo, animais meus!” A águia e a serpente, por seu turno, juntaram-se-lhe quando ele pronunciou estas palavras, e lá puseram-se a olhá-lo. Ali fora era melhor o ar do que onde estavam os homens superiores.




II

Apenas Zaratustra saiu da caverna, o velho feiticeiro ergueu-se, e, olhando maliciosamente, disse:
“Foi-se. E já, homens superiores, – permiti vos envaideça com este nome de elogio e lisonja como ele o fez, – já de mim se apodera o espírito maligno e falaz, o meu espírito feiticeiro, o demônio da melancolia, que é o adversário de Zaratustra: desculpai-o! Quer agora realizar os seus encantamentos na vossa presença; é positivamente a sua hora. Em vão luto com este espírito mau.
A todos vós, sejam os que querem as honras que vos pretendem aidjudicar com palavras, – ora vos chameis “os espíritos livres”, ora “os verídicos”, já “os redentores do espírito”, já os “libertos” ou então “os do grande anelo”; – a todos os que, como eu estão atacados pelo “grande tédio”, para os quais morreu o antigo deus e para quem não existe ainda no berço, envolto em faixas, nenhum deus novo: a todos vós é propício o meu espírito maligno, o meu demônio encantador.
Conheço-vos, homens superiores, e conheço também este duende que estimo a meu pesar, este Zaratustra. As mais das vezes parece-me uma larva de santo.
Parece-me um como novo e estranho artifício, em que se compraz o meu espírito maligno, o demônio da melancolia; amiúde suponho amar Zaratustra por causa do meu espírito maligno.
Mas já se apodera de mim e me domina esse espirito maligno, esse espírito de melancolia, esse demônio do crepúsculo; e ainda o tenta...
Abri os olhos, homens superiores!... Dá-lhe tentações de vir, nu, não sei como homem ou mulher; mas vem, domina-me, infeliz de mim! abri os vossos sentidos!
Extingue-se o dia para todas as coisas, mesmo para as melhores; chega o crepúsculo! Ouvi e vede, homens superiores, que demônio, homem ou mulher, é este espírito da melancolia do crepúsculo!”
Assim falou o velho feiticeiro; depois olhou maliciosamente ao derredor e pegou na harpa.



III

“Na serena atmosfera, quando já o consolo do rocio desce à terra, invisível e silencioso – porque o rocio consolador veste delicadamente como todos os meigos consoladores, – então recordas tu, coração ardente, como estavas sedento de lágrimas divinas e gotas de orvalho, quando te sentias abrasado e fatigado, porque nos erbosos caminhos amarelos corriam em torno de ti através das escuras árvores, maliciosos raios de sol poente, ardentes olhares de sol, deslumbrantes e malévolos.
“Pretendente da verdade! tu? – Assim chasqueavam. – Não. Simples poeta. Um animal astuto e rasteiro que mente deliberadamente; um animal ansioso de presa, mascarado de cores vivas, máscara para si próprio, presa para si mesmo. Isto... pretendente da verdade?... Um pobre louco! um simples poeta! um palrador pitoresco que perora por detrás de uma máscara de demente que anda vagueando por enganosas pontes de palavras, por ilusórios arco-íris; que anda errante e bamboleante de cá para lá em ilusórios zelos! Um louco, nada mais!
Isto... é que é ser pretendente da verdade?... Não! Nem silencioso, rígido e frio como uma imagem, como uma estátua divina; nem postado em frente dos templos como guarda dos umbrais de um deus, não! Inimigo destes monumentos de virtude, mais harmonizado com os desertos do que com os templos cheios de arteirices felinas, saltas por todas as janelas para te lançares em todas as aventuras, farejas todos os bosques virgens, e entre as carapintadas feras, rapace, astuto, embusteiro, corres com lábios sensuais fresco, corado e belo como o pecado soberanamente chasqueador, soberanamente infernal, soberanamente cruel.
Ou és como a águia que olha e torna a olhar fixamente o abismo, o seu abismo... ó! como desce, como cai, como se some, girando em profundidades cada vez mais fundas! E depois que maneira de se precipitar de súbito, faminta, ansiosa de cordeiros, cheia de furibunda aversão por tudo quanto tem aparências virtuosas, cortesia humilde, pêlo encrespado e aspecto sereno, como a meiga benevolência do cordeiro!
São assim as ânsias do poeta: como de pantera, como de águia. Assim são os teus anelos sob os teus artifícios, louco! poeta!
Tu, que és um homem, viste um Deus como um cordeiro... Separar o Deus do homem como o cordeiro do homem, e rir-se ao separá-lo; esta é que é a tua felicidade! A felicidade de uma pantera e de uma águia, a felicidade de um poeta e um louco!
Assim como na serena atmosfera, quando já a meia luz, inimiga do dia, desliza invejosa verdejante entre rubores purpurinos, empalidecem à sua passagem as rosas celestes até caírem e sumirem-se na noite: assim caí eu mesmo, noutro tempo, da minha loucura de verdade, dos meus anelos do dia, fatigado do dia, enfermo de luz; assim caí para o caso, para as sombras... abrasado pela sede de uma verdade. Recordas-te, coração ardente, como então estavas sedento? Esteja eu desterrado de toda a verdade! Mais do que um louco, não! Tanto como um poeta!”



Da Ciência

Assim cantava o feiticeiro, e todos os que estavam ali reunidos caíram como pássaros na rede da sua astuta e melancólica volutuosidade. O único que se não deixou apanhar foi o conscencioso que, arrebatando-lhe a harpa das mãos, gritou:
“Deixa entrar o ar puro! Mandei entrar Zaratustra! Infeccionas esta caverna e tornas a atmosfera sufocante, maligno feiticeiro!
Homem falso e ardiloso, a tua sedução conduz a desejos e a desertos desconhecidos! E, ai de nós, se homens como tu dão em falar da verdade com ares importantes!
Ai de todos os espíritos livres que não estejam precavidos contra semelhantes feiticeiros! Podem despedir-se da sua liberdade, porque tu predicas o regresso às prisões e a elas conduzes!
No teu lamento, demônio melancólico, percebe-se um reclamo: pareces-te com aqueles cujo elogio da castidade impele secretamente à volutuosidade!”
Assim falou o consciencioso, mas o velho feiticeiro olhava em seu derredor, gozando a sua vitória, e devido a isso suportava a cólera do consciencioso.
“Cala-te – disse com voz modesta: – as boas canções requerem bons ecos; depois de boas canções é preciso haver silêncio durante um bom espaço de tempo.
Assim fazem todos os homens superiores.
Tu, porém, pouco compreendeste do meu canto, provavelmente! Tens pouco espírito encantador”.
– “Honras-me – tornou o consciencioso – distinguindo-me assim. Mas, que vejo? – Vós ainda, continuas aí assentados com olhares ansiosos? Ó! almas livres! que foi feito então da vossa liberdade?
Creio que vos deveis parecer com aqueles que por muito tempo vêm bailar raparigas nuas – até as vossas próprias almas se põem a bailar!
Deve haver em vós, homens superiores, muito mais do que aquilo a que o feiticeiro chama o seu maligno espírito de encantamento e de fraude; de certo somos diferentes.
E na verdade, antes de Zaratustra tornar à sua caverna, falamos e pensamos juntos o suficiente para eu saber que somos diferentes.
Vós e eu buscamos também aqui em cima coisas diferentes. Pois eu procuro mais certeza: por isso me acerquei de Zaratustra, que é a torre e a vontade mais firme, hoje que tudo vacila e treme na terra.
Quanto a vós, porém, basta-me ver os olhos que fazeis para apostar que procurais antes incertezas, estremecimentos, perigos, tremores de terra.
Parece-me – desculpai-me a presunção, homens superiores – parece-me que desejais a vida mais lastimável e perigosa, a que a mim me inspira temor: a vida dos animais selvagens, os bosques, as cavernas, as montanhas abrutas e os labirintos.
E os que mais vos agradam não são os que conduzem para fora do perigo; mas os que levam para fora de todos os caminhos, os sedutores. Mas se tais anelos são verdadeiros em vós outros, a mim parecem-se-me de toda a maneira impossíveis.
Que o sentimento inato e primordial é o temor; pelo temor se explica tudo; o pecado original e a virtude original.
A minha própria virtude nasceu do temor; chama-se ciência.
E o temor que mais tem logrado no homem é o temor aos animais selvagens, incluso o animal que o homem oculta e receia em si, aquele a que Zaratustra chama “a besta interior”.
Este estranho temor, por fim requintado e espiritualizado, parece-me que hoje se chama ciência”.
Assim falava o consciencioso; mas Zaratustra, que nesse mesmo instante tornava à caverna, e que ouvira e adivinhara a última parte do discurso, atirou ao consciencioso um punhado de rosas, rindo-se das suas “verdades”. – “Que? – exclamou – que acabo de ouvir? Parece-me que estás louco deveras, ou então que o estou eu; vou já virar a tua verdade de cima para baixo.
Que o temor é a nossa exceção.
Em compensação, o valor e a paixão pelas aventuras, pelo incerto, pelas coisas ainda não apontadas: o valor parece-me toda a história primitiva do homem.
Invejou e arrebatou aos animais mais selvagens e valorosos todas as suas virtudes: só assim se fez homem.
Esse valor apurado e espiritualizado por fim, esse valor humano com asas de águia e astúcia de serpente, parece-me chamar-se hoje”.
Zaratustra! “– exclamaram simultaneamente todos os ali reunidos, soltando uma gargalhada; mas qualquer coisa se elevou deles que se assemelhava a uma nuvem negra. Também o feiticeiro se pôs a rir e disse maliciosamente: “Arre! Foi-se-me o espírito maligno!
Eu preveni-vos contra ele, quando vos dizia que era um impostor, um espírito mentiroso e fraudulento.
Sobretudo quando se mostra a nu. Que posso eu fazer, porém, contra seus ardis? Acaso fui eu que o criei e quem criou o mundo?
Vamos! Tornemos a ser bons e joviais! E conquanto Zaratustra franza o sobrolho – olhem-no! tem-me aversão! – antes de chegar a noite aprenderá outra vez amar-me e a elogiar-me: não pode estar muito tempo sem fazer doidices destas...
Este ama os seus inimigos: dos que tenho encontrado é quem melhor conhece tal arte. Mas vinga-se deles... nos amigos!”
Assim falou o velho feiticeiro, e os homens superiores aclamaram-no; de forma que Zaratustra, rodeando, foi estreitando maliciosa e amoravelmente as mãos dos seus amigos, como quem tem de que se desculpar; mas quando chegou à porta da caverna, tornou a ansiar pelo ar puro de fora e a companhia dos seus animais, e quis sair.



Entre as Filhas do Deserto

I

“Não te retires – disse então o viandante que se dizia a sombra de Zaratustra. – Fica ao pé de nós, quando não poderia tornar a invadir-nos a antiga e esmagadora aflição.
Já o velho feiticeiro nos prodigalizou o melhor da sua colheita; e olha: o Papa, tão piedoso, tem os olhos inundados de lágrimas, e tornou a embarcar no mar da melancolia.
Estes reis ainda podiam mostrar boa cara diante de nós todos; porque são os que melhor aprenderam essa arte. Aposto que, se se não tivessem testemunhas, também lhes chegaria a má peça, a má peça das nuvens passageiras, da úmida melancolia, do céu nublado, dos sóis roubados, dos ventos de outono que zumbem: a má peça do nosso alarido e dos nossos gritos de angústia. Zaratustra, deixa-te estar conosco! Há aqui muita miséria oculta, muita noite, muitas nuvens, muito ar pesado!
Nutriste-nos de fortes alimentos viris e de máximas fortificantes; não permitas que para conclusão nos surpreendam novamente os espíritos da frouxidão, os espíritos efeminados!
Só tu sabes fortificar e purificar o ambiente que te rodeia! Acaso já encontrei na terra ar tão puro como na tua caverna e nos teus domínios?
E contudo, tenho visto muitos países; as minhas narinas aprenderam a examinar e a apreciar ares múltiplos; mas onde elas experimentam o seu maior deleite é a teu lado.
A não ser... a não ser... Ó! Perdoa-me uma antiga recordação! Perdoa-me um antigo canto de sobremesa que compus em tempos às filhas do deserto.
Que lá também havia ar puro e límpido de Oriente; foi onde estive mais longe da velha Europa, nebulosa, úmida e melancólica.
Então amava eu as filhas do Oriente e doutros reinos do céu azulado onde se não chocam nuvens nem pensamentos.
Nem imaginais as feiticeiras que lá se encontravam sentadas, quando não dançavam, profundas, mas sem pensamentos, como segredos, como enigmas engalanados, como nozes de sobremesa, coloridas e verdadeiramente singulares, mas sem nuvens: enigmas que se deixam adivinhar. Em honra dessas donzelas inventei então um salmo de sobremesa”.
Assim falou o viandante que se dizia sombra de Zaratustra; e antes que alguém lho pudesse impedir, pegou na harpa do velho feiticeiro, cruzou as pernas e olhou tranqüilamente à sua roda, aspirando o ar pelo nariz com expressão interrogadora, como quem aprecia ar novo em novos países. Depois principiou a cantar com uma voz que parecia um rugido.

O deserto cresce,
Ai daquele que oculta desertos!

Solene! Digno princípio! Princípio de solenidade africana! Digno de um leão ou de um bramador moral... mas não de vós, arrebatadoras amigas, a cujos pés me é dado a mim europeu, sentar-me entre palmeiras.
Maravilhoso! Eis-me agora aqui, próximo do deserto, e já outra vez tão longe do deserto, absorto por este pequenino oásis; porque mesmo agora abriu ele a boca bocejando, a mais perfumada de todas as bocas, e eu lhe caí dentro, profundamente, entre vós, arrebatadoras amigas.
Bendita, bendita aquela baleia, que tão bondosa quis ser para o seu hóspede! Compreendeis a minha douta alusão?... Bendito o seu ventre, se foi tão grato vento de oásis como este! Coisa de que duvido, no entanto; porque venho da Europa, que é a mais incrédula de todas as esposas.
Deus a melhore! Amém!
Eis-me aqui, pois, agora, neste pequenino oásis, como uma tâmara, madura, açucarada, de áureo suco, ansiosa por boca redonda de donzela, mas ainda mais por virginais dentes incisivos acerados, frios como o gelo e brancos como neve, que por eles pena o ardente coração de todas as tâmaras.
Semelhante a esses frutos do Meio-dia, aqui estou cercado de alados insetos que dançam e folgam à roda de mim, assim como os desejos e pensamentos mais pequeninos, mais loucos e ainda mais maliciosos; aqui estou, bichinhas donzelas mudas e cheias de pressentimento. Duda e Zuleika, assediado por vós, – esfingezado, para condensar numa palavra muitas significações (Perdoe-me Deus este pecado lingüístico!...); aqui estou aspirando o melhor dos ares, verdadeiro ar de paraíso, ar diáfano e tênue, raiado de ouro, ar tão bom como jamais caiu outro da lua. Seria casualidade ou presunção, como contam os antigos poetas? Eu, porém, cético, duvido, porque venho da Europa que é a mais incrédula de todas as esposas. Deus a melhore. Amém.
Saboreando este belo ar, com as narinas dilatadas, sem futuro, sem recordação assim estou aqui, arrebatadoras amigas, e vejo a palmeira arquear-se, dobrar-se e vergar-se – o que qualquer faz quando a contempla longo tempo – como uma bailarina que, a meu ver, se susteve já muito, muito, com perigosa insistência, sobre uma perna. Ao que parece, esqueceu a outra. Eu, pelo menos, debalde procurei a gêmea alfaia – quero dizer, a outra perna – nas santas imediações das suas graciosas e arrebatadoras saias, das suas saias enfeitadas, ondulantes como leques. É verdade, belas amigas, perdeu-a... Adeus! Foi-se, foi-se para sempre a outra perna. Ó! pobre perna! Aonde parará, abandonada e triste, essa perna solitária? Talvez prostrada por feroz leão monstruoso de ruivas guedelhas? E já roída, horror! horror! Miseravelmente dilacerada!
Ó! Não me choreis, ternos corações! Não me choreis, corações de tâmaras, seios de leite! Sé homem, Zuleika! Valor! Valor! Não chores mais, pálida Duda.
Ó! ergue-te, dignidade! Sopra, sopra outra vez, fole da verdade! É bramar ainda, bramar moralmente, bramar como leão moral ante as filhas do deserto! Que os alaridos da virtude, arrebatadoras jovens, são, principalmente, a paixão ardente, a fome voraz do europeu. E vede já em mim o europeu: não posso remediá-lo. Deus me valha! Amém!
O deserto cresce. Ai daquele que oculta desertos!”



O Despertar

Depois do canto do viandante e da sombra, a caverna encheu-se subitamente de risos e ruídos; e como todos os hóspedes falavam ao mesmo tempo e até o próprio jumento com tal animação não podia estar quieto, Zaratustra experimentou certo enfado e certo prurido zombeteiro contra as suas visitas, embora tal regozijo o satisfizesse por julgá-lo um sinal de cura. Escapou-se pois, para o exterior, para o ar livre, e falou aos seus animais.
“Para onde iria parar agora a tua angústia? – disse, e já se lhe dissipava o enfado. Parece terem esquecido na minha moradia os seus gritos de angústia, conquanto, desgraçadamente, não perdessem o costume de gritar”.
E Zaratustra tapou os ouvidos, porque nesse momento os I A do jumento e a algazarra dos homens superiores formavam um estranho concerto.
“Estão alegres – prosseguiu – e, quem sabe? talvez à custa do seu hóspede; conquanto aprendessem a rir de mim, não foi o meu riso, todavia, que eles aprenderam.
Mas, que importa? São velhos; curam-se à sua maneira, riem a seu modo; os meus ouvidos já suportaram coisas piores.
Este dia foi uma vitória. Já retrocede, já foge o espírito do pesadume, meu antigo inimigo mortal. Como quer acabar bem este dia que tão mal e tão maliciosamente principiou!
E quer acabar. Chega o crepúsculo; atravessa a cavalo no mar, o bom corcel. Como se meneia o bem-aventurado, que torna na sua sela de púrpura.
O céu olha sereno; o mundo dilata-se profundamente; homens singulares, que vos aproximastes de mim, vale a pena viver ao pé de mim!”
Assim falava Zaratustra. E nesse somenos tornaram a sair da caverna os gritos e as risadas dos homens superiores. Então Zaratustra continuou:
“Excitam-se; o meu cevo faz o seu defeito; também deles foge o inimigo, o espírito do pesadume. Já aprendem a rir de si mesmos: ouvirei bem?
As minhas saborosas e rigorosas máximas surtem efeito; e, na verdade, não os alimentei com legumes que incham, mas com um alimento de guerreiros, com um alimento de conquistadores: despertei novos desejos.
As suas pernas e os seus braços revelam novas esperanças; o coração dilata-se-lhes. Encontram novas palavras; breve o seu espírito respirará desenfado.
Compreendo que este alimento não seja para crianças, nem para mulheres lânguidas. São precisos outros meios para lhes convencer as entranhas: deles não sou médico nem mestre.
Foge o tédio desses homens superiores: eis a minha vitória. Sentem-se seguros no meu reino, perdem a imbecil vergonha, espraiam-se.
Espraiam os corações; para eles tornam os bons momentos: divertem-se e ruminam: tornam-se agradecidos.
Isso é que eu tenho como melhor sinal; tornam-se agradecidos. Não passará muito tempo que não inventem festas e erijam monumentos comemorativos às suas antigas alegrias. São convalescentes!”
Assim falava Zaratustra com íntimo júbilo e olhando para fora. Os animais encostaram-se a ele, honrando-lhe a felicidade e o silêncio.



II

De súbito, porém, sobressaltou-se o ouvido de Zaratustra, porque a caverna, até ali animada pela bulha e o riso, ficou de repente num silêncio sepulcral. Às narinas de Zaratustra chegou um odor agradável de fumo e de incenso, como se tivessem posto pinhas ao lume.
“Que sucedera? Que estarão à fazer?” – perguntou a si mesmo, aproximando-se da entrada para ver os convidados sem ser visto. Mas, ó! maravilhas das maravilhas! Que viram então os seus olhos?
“Tornaram-se todos religiosos! rezam! estão doidos! – disse numa admiração sem limites.
E efetivamente, todos aqueles homens superiores – os dois reis, o ex-papa, o sinistro feiticeiro, o mendigo voluntário, o viandante e a sombra, o velho adivinho, o consciencioso e o homem mais feio – estavam prostrado de joelhos, como velhas beatas: estavam de joelhos a adorar o jumento!
E o mais feio dos homens começava a soprar, como se dele quisesse sair qualquer coisa inexprimível; mas, quando afinal se pôs a falar, salmodiava uma piedosa e singular ladainha em louvor do adorado e incensado burro. Eis qual era essa ladainha:

“Amém! E honra e estima e gratidão e louvores e forças sejam com o nosso deus, de eternidade em eternidade”.
E o burro zurrava: I A.
“Ele leva as nossas cargas; é pacifico e nunca diz não. E o ama o seu deus; castiga-o”.
– E o burro zurrava. I A.
“Não fala senão para dizer sim ao mundo que criou: assim canta louvores ao seu mundo. A sua astúcia não fala; por isso mesmo rara vez erra”.
E o burro zurrava: I A.
“Ignorado passa pelo mundo. A cor do seu corpo, como que envolve a sua virtude, é parda. Se tem talento oculta-o; mas todos lhe vêm as compridas orelhas”.
E o burro zurrava: I A.
“Que recôndita sabedoria é ter orelhas compridas e dizer sempre sim e nunca não. Não criou ele o mundo à sua imagem? Isto é, o mais burro possível?”
E o burro zurrava: I A.
“Tu segues caminhos direitos e caminhos tortuosos; aquele a que os homens chamam direito ou torto, pouco te importa. O teu reino encontra-se além do bem e do mal. A tua inocência é não saber o que se chama inocência”.
E o burro zurrava;: I A.
“Vê como tu não repeles ninguém, nem os mendigos, nem os reis. Deixas vir a ti as criancinhas, e se os velhacos te querem tentar dizes simplesmente: I A.”
E o burro zurrava,: I A.
“Gostas das burras e dos figos frescos, e não és exigente com a comida. Um caldo te satisfaz as entranhas quando tens fome. Nisso reside a sabedoria de um deus”.
E o burro zurrava: I A.



A Festa do Burro

I

Neste ponto da ladainha, porém, Zaratustra não se pode conter mais. Gritou por sua vez I A, com voz ainda mais roufenha, do que a do jumento, e de um salto postou-se no centro dos seus enlouquecidos hospedes.
“Mas, que estais aí fazendo, filhos dos homens? – exclamou, erguendo do solo os que rezavam. – Pobres de vós, se outro que não fosse Zaratustra vos visse!
Todos acreditariam que com a vossa nova fé, vos havíeis tornado piores blasfemos, ou as mais insensatas velhas.
E tu, antigo Papa, como podes estar de acordo contigo mesmo, adorando assim um burro como se fosse um deus?”
“Perdoa, Zaratustra – respondeu o Papa; – mas das coisas de Deus ainda eu entendo mais do que tu.
Antes adorar a Deus sob esta forma do que o não adorar de forma nenhuma! Reflete nestas palavras, eminente amigo; breve compreenderás que contém sabedoria.
Aquele que diz: “Deus é espírito” foi o que até hoje deu na terra o passo, o salto maior para a incredulidade! Tais palavras não são fáceis de reparar na terra!
O meu velho coração salta e rejubila ao ver que ainda há que adorar na terra.
Perdoa, Zaratustra, ao velho coração de um Papa religioso!”
“E tu, – disse Zaratustra ao viandante e à sombra – dizes-te e imaginas ser um espirito livre? E entregas-te a semelhantes idolatrias e momices?
Antes adorar a Deus sob esta forma do que o não.
Na verdade, fazes ainda aqui coisas piores do que as que fazias ao lado das raparigas morenas e maliciosas, novo e malicioso crente”.
Respondeu o viandante e a sombra: “Tens razão; mas que havia eu de fazer? Digas o que disseres, Zaratustra, o Deus antigo revive.
A causa de tudo isto é o mais feio dos homens: foi ele que o ressuscitou. E se diz que em tempos o matou, a morte entre os deuses é tão só um prejuízo”.
– “E tu maligno velho encantador, que fizeste? – prosseguiu Zaratustrta. – Quem há de crer em ti nestes tempos de liberdade, quando tu crês em tais burricadas divinas?
Como tu, tão astuto, pudeste cometer semelhante sandice!”
“Tens razão, Zaratustra – respondeu o astuto encantador – foi uma sandice e bem cara me custou”.
“E tu também – disse Zaratustra ao consciencioso, – reflete e põe o dedo no nariz! Nada vês nisto que te perturbe a consciência? Não será o teu espírito demasiado limpo para tais adorações e para a presunção de semelhantes boatos?
“Há neste espetáculo – responde o consciencioso levando o dedo ao nariz – há neste espetáculo qualquer coisa que faz bem à minha consciência.
Talvez eu não tenha o direito de crer em Deus; mas o certo é que, sob esta forma, Deus ainda me parece altamente digno de fé.
Deus deve ser eterno, segundo o testemunho dos mais piedosos: quem tanto tempo tem, tempo toma. De forma que com toda a lentidão e estupidez que queira, pode ir verdadeiramente longe.
E quem tenha inteligência demais podia muito bem suspirar pela estupidez e pela loucura. Quando não, pensa em ti mesmo, Zaratustra!
Tu mesmo, na verdade, te poderias muito bem tornar burro à força de sabedoria.
Um sábio perfeito não gosta de seguir os caminhos mais tortuosos? A aparência o diz, Zaratustra: di-lo a tua aparência!”
“E tu, afinal – disse Zaratustra dirigindo-se ao mais feio dos homens, que caminhava no chão estendendo os braços até ao burro para lhe dar vinho a beber, – fala, inexprimível: que foi que fizeste?
Dize: que fizeste?
É verdade que o ressuscitaste, como estes dizem? E por que? Não estava morto com razão?
Como te converteste? Fala inexprimivel!”
“Ó! Zaratustra – respondeu o mais feio dos homens. – És um brejeiro!
Se ele ainda vive, ou se revive, ou se morreu completamente, qual de nós o sabe melhor?
Sei, porém, de uma coisa, – e contigo a aprendi em tempos, Zaratustra: – aquele que quer matar mais completamente põe-se a rir.
“Não é com a cólera, mas com o riso que se mata”. Assim falavas tu noutro tempo. – Ó! Zaratustra! tu que permaneces oculto destruidor sem cólera, santo perigoso, és um brejeiro!”



II

Então Zaratustra, pasmado de tantos sofismas, tornou a correr para a porta da caverna, e dirigindo-se a todos os convidados começou a gritar com voz forte.
“Refinados loucos, truões! Para que dissimular e ocultar-vos diante de mim!
Como folgava, contudo, de alegria e malícia o vosso coração, porque afinal tornastes a ser como crianças – isto é, religiosos, – porque afinal tornastes a rezar, a juntar as mãos e a dizer “amado Deus!”
Mas agora saí deste quarto de crianças, desta minha caverna onde hoje estão como em sua casa todas as infantilidades.
Refrescai lá fora os vossos ardores infantis e apaziguai o tumulto do vosso coração!
É verdade que se não tornais a ser como crianças, não podereis entrar no tal reino dos céus – e Zaratustra ergueu as mãos para o ar.
– Nós, porém, não queremos entrar no reino dos céus; tornámo-nos homens: por isso mesmo queremos o reino da terra”.



III

E tornando a usar da palavra, Zaratustra disse:
“Ó! meus novos amigos! Homens singulares! homens superiores! como me agradais desde que vos tornastes alegres!
Estais em pleno florescimento, e parece-me que, para flores como vós, são precisas festas novas, uma boa loucura, um culto e uma festa do burro, um velho tresloucado e alegre à maneira de Zaratustra, um turbilhão que com o seu sopro vos varra a alma.
Não esqueçais esta noite e esta festa do burro, homens superiores! Foi o que inventastes na minha mansão e, para mim, isso é um bom sinal; não há como convalescentes para inventarem tais coisas!
E se tornardes a celebrar esta festa do burro, fazei-a por amor de vós e por amor de mim. E fazei-a em minha lembrança”.
Assim falava Zaratustra.



O Canto de Embriaguez

I

Entretanto, todos haviam saído um após outro, e se encontravam ao ar livre no seio da noite fresca e silenciosa; e Zaratustra pegou na mão do mais feio dos homens, para lhe mostrar o seu mundo noturno, a grande lua redonda e as cascatas prateadas junto da caverna. Por fim, todos aqueles velhos de coração consolado e valoroso se detiveram, admirando-se intimamente de se sentirem tão bem na terra; a placidez da noite penetrava-lhes nos corações, cada vez mais profundamente. E Zaratustra pensava de novo consigo: “Ó! como me agradam agora estes homens superiores!” – mas não lhes disse, porque lhes respeitava a felicidade e o silêncio.
Então surgiu o mais surpreendente de quanto surpreendente acontecera naquele dia. O mais feio dos homens começou por derradeira vez a resfolegar, e quando conseguiu falar, saiu-lhe dos lábios uma pergunta profunda e clara que agitou o coração de quantos a ouviram.
“Meus amigos, todos que estais aqui presentes – disse o mais feio dos homens – que vos parece? Graças a este, estou pela primeira vez satisfeito de ter vivido a vida inteira.
E ainda não me basta fazer tal declaração.
Vale a pena viver na terra: um dia, uma festa em companhia de Zaratustra me ensinaram a amar a terra.
“Era isto a vida? – direi à morte.
Pois bem: repita-se!”
Assim falava o mais feio dos homens, perto da meia-noite. E que julgais sucedeu nesse momento? Enquanto os homens superiores ouviam a pergunta, repararam na sua transformação e cura, e em quem lhas proporcionara; por isso se precipitaram para Zaratustra beijando-lhe a mão e testemunhando-lhe a sua gratidão, cada qual a seu modo: de forma que uns riam e outros choravam. O velho encantador dançava de prazer; e se, como crêem certos narradores, estava então cheio de vinho doce, mais cheio estava certamente de vida doce, e despedira-se de toda a melancolia. Há ainda quem conte que o burro também se pusera a dançar; porque não fora debalde que o homem mais feio lhe dera vinho. Fosse isso verdade ou não, pouco importa, e se o burro não bailou nessa noite, sucederam, contudo, coisas maiores e mais singulares do que a de um burro bailar.
Em suma, como diz o provérbio de Zaratustra:
“Que importa!”



II

Quando tal se passou com o mais feio dos homens, Zaratustra ficou como tonto: toldava-se-lhe o olhar, a sua língua tartamudeava e os pés vacilavam-lhe. Quem poderia adivinhar os pensamentos que naquele instante atravessaram a alma de Zaratustra? Era visível, porém, que o seu espírito vagueava para trás e para diante, e passava muito alto, como “sobre elevada cordilheira (conforme está escrito) que, interposta entre dois mares, caminha entre o passado e o futuro como pesada nuvem”.
Nisto, enquanto os homens superiores o amparavam nos braços, tornou a si pouco a pouco, afastando com o gesto os seus assustados veneradores: mas não falava. Súbito voltou a cabeça, porque lhe parecia ouvir qualquer coisa: então pôs o dedo na boca e disse: “Vinde!”
E imediatamente tudo ficou tranqüilo e em silêncio em torno dele; mas das profundidades subia lentamente o som de um sino. Zaratustra aplicou o ouvido, assim como os homens superiores; depois tornou a pôr o dedo na boca, e disse outra vez: “Vinde! Vinde! Aproxima-se a meia-noite!” E a voz transformara-se-lhe; mas ele continuava imóvel no mesmo sítio. Então reinou um silêncio ainda maior e uma quietação ainda mais profunda e toda a gente escutava, até o burro e os animais de Zaratustra, a águia e a serpente, e também a caverna e a fria lua e a própria noite.
Mas Zaratustra ergueu-se pela terceira vez, levou a mão aos lábios e disse:
“Vinde! Vinde! Vamos! É a hora: caminhemos para a noite!”



III

“Homens superiores, aproxima-se a meia-noite: quero-vos dizer uma coisa ao ouvido, como mo disse ao ouvido aquele velho sino: com o mesmo segredo, espanto e cordialidade com que me falou esse sino da meia-noite, que tem vivido mais do que um só homem que já cantou as palpitações dolorosas dos corações de vossos pais.
Como suspira! Como ri em sonhos a venerável e profunda, profundíssima meia-noite.
Silêncio! Silêncio! Ouvem-se muitas coisas que se não atrevem a erguer a voz durante o dia: mas agora que o ar é puro e se calou também o ruído dos nossos corações, agora as coisas falam e ouvem-se, agora introduzem-se nas almas noturnas e despertas. Como suspira! Como ri em sonhos!
Não ouves como te fala a ti secretamente, com espanto e cordialidade, a venerável e profunda, profundíssima meia-noite?
Ó! Homem! Excita o cérebro!



IV

Ai de mim! Que foi do tempo? Não caiu em profundos poços? O mundo dorme.
O cão uiva; brilha a lua. Antes morrer do que dizer-vos o que pensa agora o meu coração de meia-noite!
Estou morto. Tudo findou, Aranha: por que teces a tua teia, à minha roda? Queres sangue! Cai o orvalho, chega a hora em que gelo, a hora que pergunta e torna a perguntar incessante: “Quem tem valor para tanto? Quem há de ser o dono da terra? Quem quer dizer: tendes de correr assim, rios grandes e pequenos?”
Aproxima-se a hora! Excita o cérebro, homem superior! Este discurso é para ouvidos finos, para os teus ouvidos. Que diz a profunda meia-noite?



V

Vejo-me arrebatado; a minha alma, salta. Cotidiana tarefa! Cotidiana tarefa! Quem deve ser o dono do mundo?
A lua é fresca; o vento emudece. Ai! Ai! Já voastes a bastante altura? Dançaste? Mas, uma perna não é uma asa.
Bons dançarinos, agora passou a alegria toda: o vinho converteu-se em fezes; as sepulturas balbuciam.
Não voastes a bastante altura; agora as sepulturas balbuciam: “Mas salvai os mortos! Porque é noite há tanto tempo? Não vos embriaga a lua?”
Salvai as sepulturas, homens superiores! Despertai os cadáveres! Ai! Porque é que o verme ainda rói? Aproxima-se a hora, aproxima-se; soa o sino; ainda o coração anela; o verme, o verme do coração ainda rói.
O mundo é profundo!



VI

Maviosa lira! Maviosa lira! Adoro o teu som, o teu encantador som de sapo!
Há que tempos e que de longe – dos tanques do amor – chega a mim esse som!
Velho sino! Maviosa lira! Todas as dores te têm desfibrado o coração: a dor de pai, a dor dos antepassados, a dor dos primeiros pais; o teu discurso alcança já a maturação como o dourado outono e a tarde, como o meu coração de solitário, agra fala: o próprio mundo amadureceu; a uva enegrece; agora quer morrer, morrer de felicidade. Não o conjeturais, homens superiores?
Secretamente sobe um perfume e um odor de ternidade, um aroma – como de dourado vinho delicioso – de rara ventura;
Ventura inebriante de morrer, ventura de meia-noite, que canta:
O fundo é profundo e mais profundo do que o dia.



VII

Deixa-me! Deixa-me. Sou puro demais para ti. Não me toques! Não se acaba de consumar o meu mundo?
A minha pele é demasiado pura para as tuas mãos? Deixa-me, triste e sombrio dia! Não é mais clara a meia-noite?
Donos da terra devem ser os mais fortes, as almas da meia-noite, que são mais claras e profundas que todos os dias.
Ó! dia! Andas às cegas atrás de mim? Exploras a minha felicidade? Serei para ti, rico, solitário, um tesouro oculto, uma arca de ouro?
Ó! mundo! Serei o que queres? Serei espiritual para ti? Serei divino para ti? Dia e mundo são demasiado tristes, tendes mãos mais aptas, colhei uma felicidade mais profunda, um infortúnio mais profundo; colhei um deus qualquer; não me prendais a mim. A minha desdita e a minha dita são profundas, dia singular; mas não sou um deus, nem o inferno de um deus: Profunda é a sua dor.



VIII

A dor de Deus é mais profunda, mundo singular! Procura a dor de Deus; não me procures a mim! Quem sou eu? Maviosa lira cheia de embriagues; uma lira de meia-noite, um sino plangente que deve falar diante dos surdos, homens superiores. Que vós outros não me compreendeis!
Isto é fato! Isto é fato! Ó! mocidade! Ó! meio-dia! Ó! tarde! Chegou agora o crepúsculo e a noite e a meia-noite; uiva o cão, o vento – não será também o vento um cão? – geme, ladra, uiva. Como suspira com se ri e geme a meia-noite!
Como agora fala sobriamente esta ébria poetisa! Passar-lhe-ia a embriagues? tresnoitaria? rumina?
A velha e profunda meia-noite rumina em sonhos a sua dor e ainda mais a sua alegria: pois se a dor é profunda, a alegria é mais profunda do que o sofrimento.



IX

Por que me elogias, vinha? Eu, todavia, podei-te. Sou cruel; sangras: que quer o teu louvor da minha sombria crueldade?
“Tudo quanto está sazonado quer morrer!” Assim falas tu. Bendita seja a poda do vindimador! Tudo que não está maduro quer, porém, viver! ó! desventura!
A dor diz: “Passa! Vai-te, dor!” Mas tudo que sofre quer viver para amadurecer, regozijar-se e anelar, anelar o mais longínquo, o mais alto, o mais luminoso. Quero herdeiros (assim fala todo aquele que sofre) quero filhos: não me quero a mim”.
A alegria, contudo, não quer herdeiros nem filhos; alegria quer-se a si mesma, quer a eternidade, quer o regresso, quer tudo igual a si eternamente.
A dor diz: “Desfibra-se, sangra, coração! Caminhai, pernas! Asas, voai! Então, vamos, meu velho coração! A dor diz: Passa!



X

Que vos parece, homens superiores? Serei um adivinho? Um sonhador? Um bêbedo? Um intérprete de sonhos? Um sino da meia-noite? Uma gota de orvalho? Um vapor e um perfume da eternidade? Não ouvís? Não percebeis? O meu mundo acaba de se consumar; a meia-noite é também meio-dia, a dor é também uma alegria, a maldição é também uma bênção, a noite é também sol; afastai-vos ou ficareis sabendo: um sábio é também um louco.
Dissestes alguma vez “sim” a uma alegria? Ó! meu amigos! Então dissestes também “sim” a todas as dores! Todas as coisas estão encadeadas, forçadas; se algum dia quisestes que uma vez se repetisse, se algum dia dissestes: “Agradas-me, felicidade!” Então quisestes que tudo tornasse.
Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, forçado: assim amastes o mundo; vós outros, os eternos, amai-lo eternamente e sempre, e dizeis também à dor: “Passa, mas torna! Porque toda a alegria quer eternidade!



XI

Toda a alegria quer a eternidade de todas as coisas, quer mal, quer fezes, quer inebriante meia-noite e quer sepulturas, quer o consolo das lágrimas, das sepulturas, quer o dourado crepúsculo...
Que não há de querer a alegria! É mais sedenta, mais cordial, mais terrível, mais secreta que toda a dor: quer-se a si mesma, morde-se a si mesma, agita-se nela a vontade da anilha; quer amor, quer ódio, nada na abundância, dá, arroja para longe de si, suplica que a aceitem, agradece a quem a recebe, quereria ser odiada; é tão rica que tem sede de dor, de inferno, de ódio, de vergonha, do mundo, porque este mundo, ah, já o conheceis.
Homens superiores, por vós suspira a alegria, a desenfreada, a bem-aventurada; suspira pela vossa malograda dor. Toda a alegria eterna suspira pelas coisas malogradas.
Pois toda a alegria se estima a si mesma; por isso quer também o sofrimento! Ó! felicidade! Ó! dor! Desfibra-te coração! Aprendei-o, homens superiores: a alegria quer a eternidade!
A alegria quer a eternidade de todas as coisas.
Quer profunda eternidade.



XII

Aprendeste agora o meu canto? Adivinhastes o que quer dizer? Eia, pois, homens superiores! entoai o meu canto!
Entoai agora vós o canto cujo título é “Outra vez” e cujo sentido é “por toda a eternidade”. Entoai, homens superiores, entoai o canto de Zaratustra!

Homem, excita o cérebro!
Que diz a profunda meia-noite?
“Tenho dormido, tenho dormido!
De um profundo sono despertei:
O mundo é profundo, mais profundo do que o dia, pensava.
Profunda é a sua dor e a alegria mais profunda que o sofrimento!
A dor diz: Passa!
Mas toda a alegria quer eternidade, quer profunda eternidade!”



O Sinal

Na manhã seguinte, Zaratustra saltou da sua jazida, apertou os rins e saiu da caverna, ardente e vigoroso, como o sol matutino que sai dos sombrios montes.
“Grande astro – disse como noutra ocasião – olho profundo de felicidade, que seria desta se te faltassem aqueles a quem iluminas?
E se eles permanecessem em seus aposentos quando tu já estás desperto e vens dar e repartir, como se te feriria o pudor!
Pois bem! estes homens superiores dormem enquanto eu estou acordado. Não são meus verdadeiros companheiros! Não é a eles que espero aqui nas minhas montanhas.
Quero principiar o meu labor, o meu dia, mas eles não compreendem quais são os sinais da minha alvorada; os meus passos não são para eles uma voz despertadora.
Dormem ainda na minha caverna, ainda o seu sono saboreia os meus cantos de embriaguez. Aos seus membros falta ouvido que me escute, ouvido obediente”.
Disse Zaratustra isto ao seu coração quando o sol nascia. Depois dirigiu para as alturas um olhar interrogador porque ouvia por cima de si o chamado penetrante da sua águia. “Bem! gritou para cima. – Assim me agrada e convem. Os meus animais estão acordados, porque eu estou acordado.
A minha águia acordou e saúda o sol como eu. Com as suas garras apanha a nova luz. Vós sois os meus verdadeiros animais; tendes a minha afeição.
Faltam-me, porém, os meus verdadeiros homens!”
Assim falava Zaratustra, quando de repente se sentiu rodeado por uma infinidade de aves que revoavam em torno dele: o ruído de tantas asas e o tropel que lhe rodeava a cabeça eram tais que cerrou os olhos. E na verdade sentiu cair sobre ele qualquer coisa assim como uma nuvem de setas disparadas sobre um novo inimigo! Mas não! Era uma nuvem de amor sobre um amigo novo.
“Que sucederá? prguntou a si mesmo assombrado Zaratustra, e deixou-se cair vagarosamente na pedra grande que havia à entrada da sua caverna. Agitando, porém, as mãos em torno de si e por cima e por baixo de si, para se subtrair às carícias das aves, sucedeu-lhe uma coisa ainda mais singular, e foi que, sem dar por isso, pôs a mão sobre quentes e fartas guedelhas, e ao mesmo tempo se ouviu um rugido, um meigo e prolongado rugido de leão.
“Chega o sinal” disse Zaratustra, e o coração transmudou-se-lhe. E viu diante de si, estendido a seus pés, um corpulento animal ruivo, que encostava a cabeça aos seus joelhos e se não queria afastar dele como um cão afetuoso que torna a encontrar o antigo dono. Mas as pombas não eram menos carinhosas que o leão, e de cada vez que alguma lhe passava pelo focinho, o leão sacudia a cabeça e punha-se a rir.
Vendo tudo isto, Zaratustra só disse uma coisa: “Estão perto os meus filhos”. E depois emudeceu completamente; mas sentia o coração aliviado, e dos seus olhos corriam lágrimas que lhe banhavam as mãos. E ali permanecia imóvel, sem se preocupar com coisa alguma, sem sequer se defender dos animais. Entretanto, as pombas voavam de um lado para outro, pousavam-lhe nos ombros, acariciavam-lhe os brancos cabelos, e eram infatigáveis na sua ternura. E o leão lambia incessantemente as lágrimas que corriam pelas mãos de Zaratustra, rugindo e rosnando timidamente. Eis o que fizeram estes animais.
Tudo isto poderia durar muito ou pouco tempo: porque, falando propriamente, na terra não há tempo para coisas tais.
Entrementes tinham os homens superiores acordado na caverna, e dispunham-se a ir em procissão ao encontro de Zaratustra, para o saudar, porque já haviam reparado na sua ausência. Quando chegaram, porém, à porta da caverna, o leão, ao ouvir-lhes os passos, afastou-se rapidamente de Zaratustra e precipitou-se para a caverna rugindo furiosamente. Ouvindo-o rugir, os homens superiores começaram a gritar como uma só boca e, retrocedendo, desapareceram num abrir e fechar de olhos.
Por seu lado, Zaratustra, aturdido e distraído, ergueu-se do seu assento, olhou em roda, assombrado, interrogou-se, refletiu e permaneceu sozinho – “Mas, que foi que ouvi? – disse, afinal, lentamente. – Que acaba de me suceder?”
E, recuperada a memória, compreendeu o que sucedera entre a véspera e o dia em que se encontrava. “Aqui está a pedra onde ontem pela manhã me sentei – disse cofiando a barba – aqui se abeirou de mim o adivinho, e ouvi pela primeira vez o grito que acabo de ouvir, o grande grito de angústia”.
Homens superiores, a vossa angústia foi o que ontem pela manhã me predisse o velho adivinho; quis atrair-me à vossa angústia para me tentar – “Ó! Zaratustra, disse-me ele, – venho aqui induzir-te ao último pecado.”
“Ao meu último pecado? – exclamou Zaratustra rindo-se das suas próprias palavras. – Que será que ainda me está reservado como último pecado?”
E outra vez se concentrou em si mesmo, tornando a sentar-se na pedra para refletir.
De repente ergueu-se:
“Compaixão! A compaixão pelo homem superior! – exclamou, e o semblante tornou-se-lhe de mármore”.
Ora!
Já lá vai esse tempo!
Que importam a minha paixão e a minha compaixão? Acaso aspiro à felicidade? Eu aspiro à minha obra!
Chegou o leão, os meus filhos não tardam; Zaratustra está sazonado; chegou a minha hora.
Esta é a minha alvorada; começa o meu dia: sobe, pois, sobe, Grande Meio-dia!”
Assim falava Zaratustra, e afastou-se da caverna, ardente e vigoroso, como o sol matinal que surge dos sombrios montes.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home